Os Tambus |
Os que
leram a última postagem puderam conferir o tambor de crioula do Maranhão além
da devoção de mestre Amaral à São Benedito.
Descendo
do Maranhão para Minas Gerais chegamos ao município de Lagoa Santa a pouco mais
de setenta quilômetros de Belo Horizonte, onde fica a Serra do Cipó muito
conhecida pela beleza de suas cachoeiras e por uma atração folclórica que
movimenta o mês de setembro: A festa do Candombe.
O
Candombe é uma manifestação folclórica típica da Serra do Cipó em Minas Gerais,
não tendo, à princípio, relação com o Candombe uruguaio, apesar da origem
africana. Assim como o Jongo ou “Caxambu” (presente nos demais estados da
região sudeste) possui semelhanças que sugerem sua origem a partir do mesmo
grupo africano Bantu. Além desta característica podemos citar outras
semelhanças com o jongo:
a)
Ambos relacionam poesia, dança e canto com tambores esculpidos em
troncos de árvores , os quais comumente são afinados à fogo (à exemplo do
tambor de crioula);
b)
As metáforas presentes nos versos ficam próximas das adivinhas,
formas muito presentes na África Bantu;
c)
A apresentação dos versos pelos cantores pode sugerir teor de
desafio, onde um fica com a tarefa de decifrar o verso do outro;
d)
Os eventos onde acontecem estas manifestações geralmente são
cerimônias que envolvem a comunidade e possuem alguma relação com o mundo
espiritual;
e)
Estas cerimônias se iniciam com a saudação aos tambores, que são
considerados sagrados e saudação aos antepassados e entidades do mundo
espiritual; com oferta de cachaça à estas;
f)
A referência aos “Carreiros”, boiadeiros que lidam com bois de
cangalha ou de carro-de-boi presentes nas letras e rimas dos versos.
Observa-se
que algumas destas semelhanças não se restringem apenas ao Candombe e Jongo,
indo ser encontradas como já explanado, também no tambor de crioula.
Encontramos no trabalho acadêmico do etnomusicólogo Paulo Dias
algumas justificativas históricas para as semelhanças:
“O catolicismo negro-confrarial, presente já
no século XV em Portugal, firmou-se no Brasil Colônia como única
porta de entrada para escravizados e libertos negros se inserirem
estrategicamente numa sociedade dominada pelos brancos,
notadamente por ocasião das festividades públicas oficiais e
religiosas, onde desde o século XVII são relatados os cortejos
dançantes de negros, as congadas, tratadas pelos cronistas da
colônia como “diversão honesta”. No interior de instituições importadas
da Europa, as Irmandades Leigas, africanos e seus descendentes
desenvolvem uma forma de catolicismo que se constitui em sistema
religioso incorporando à devoção aos santos católicos – Nossa
Senhora do Rosário, São Benedito, Santa Ifigênia – elementos do culto
bantu-africano aos ancestrais, manifestado seja na presença dos Reis
Congos, casal de representantes das linhagens reais africanas rearticuladas
simbolicamente em terras da diáspora, seja na invocação de
ancestrais escravizados – os pretos velhos, e divindades bantu como
Calunga e Zâmbi.
O Candombe é reconhecido pelos membros das
irmandades de Nossa Senhora do Rosário de Minas como sua
manifestação cultural mais antiga, germinal, depositária dos
mistérios do sagrado, e a manutenção de seus traços originais
torna-se ponto de honra nessas comunidades.” (trecho do artigo
publicado no livro Culturas e diásporas africanas- organização Cláudia Regina
Lahni et al.Juiz de Fora:Editora UFJF, 2009)
Café na cozinha da Dona Mercês |
É importante lembrar que esta manifestação ocorre em alguns lugares da
Serra do Cipó e estivemos na Comunidade do Açude que é uma comunidade
quilombola. Fomos muito bem recebidos na pessoa de Dona Mercês e suas
filhas que atualmente são quem “gerem” o evento. Acampamos em seu terreno
que costuma receber muitos visitantes, pessoas interessadas em conhecer o
candombe e que estavam ali pela primeira vez ou simplesmente voltavam para
rever os amigos do Açude. Na oportunidade os tambores (ou “Tambus” como são
conhecidos) completavam simplesmente duzentos anos segundo os moradores do
Açude.
Encontramos
uma comunidade muito bem organizada com laços familiares fortes onde as
mulheres desempenham papel de liderança. Outro elemento que chama muita
atenção: as crianças da comunidade brincam com música. Brincam de imitar os
versos dos adultos, a forma de cantar destes, de construir diferentes
rimas, misturam as letras e melodias conhecidas com versões próprias e com isso
inconscientemente perpetuam a música do candombe mineiro. Percebi que a rotina
da comunidade parece ser medida pelo trabalho. Durante o período em que
estivemos na comunidade, todos os afazeres tinham relação direta com a festa do
Candombe: descascando aipim (mandioca), ascendendo um forno, varrendo o chão de
terra, alimentando as galinhas ... todos trabalhavam.
Preparativos |
A festa se inicia com uma reza, à exemplo de algumas ladainhas presentes no interior do país (no Maranhão também é muito comum). Depois disto têm-se o hasteamento da bandeira de Nossa Senhora do Rosário. Enquanto isto os tambores estão sendo aquecidos na fogueira. Inicia-se a festa com os cantores versando e os tambores sendo tocados com acompanhamento de instrumentos de corda, que quase não são ouvidos.
No meio da cerimônia há a aparição de uma representação de um boi colorido adornado de chita que passa assustando à todos principalmente às crianças. A festa tem um intervalo para que todos se alimentem e depois volta com os versadores até os primeiros raios do dia.Do ponto de vista musical, é interessante ver a função desempenhada por cada um do trio de tambores, as convenções rítmicas e outros meios de comunicar o início e o fim de uma música. Os moradores do açude parecem lidar muito bem com a quantidade de pessoas que os visita para festa e se tornam verdadeiros protagonistas da cerimônia.
A Cachaça
Como
não poderia ser diferente faço aqui uma menção à Cachaça. Esta acompanha o evento do início ao fim. Como a casa de Dona Mercês estava muito cheia a
cachaça era servida em um filtro de barro, portanto cada um pegava seu copo e
se servia, com o acompanhamento de caldo de feijão, bolo de milho, café ou bolo
doce (comum). A cada ano a festa recebe mais gente e chama atenção pela
receptividade de todos, para aqueles que estão hospedados na comunidade ou para
aqueles que são apenas turistas curiosos.
Alambique do Sr. Vivi
Tive a oportunidade
de visitar apenas um alambique na região, perto do armazém mais famoso da
cidade. Armazém mesmo, daqueles de soleira de tronco de árvore e balança no
balcão, onde se acha boa cachaça (a maioria vem de Conceição do Mato Dentro),
queijos e doces.
Roda d´'água toda em madeira |
Cochos de fermentação |
Armazenamento |
Parol de envelhecimento |
O
Administrador do alambique é o Sr “Vivi” que abriu as dependências mesmo sem
estar em funcionamento. Os donos não estavam presentes e na oportunidade Sr Vivi disse que a produção estava interrompida. Muito interessante as instalações onde se percebem
artefatos de um modelo de alambique cada vez mais raro, com roda d’água, paróis
de armazenamento, dornas e cochos de fermentação cavados em tronco. A impressão
que temos é de estar em um museu que guarda as características do modo de
produção da bebida ainda no período colonial. Ressalto que sob a intenção
de modernizar e regulamentar sua produção (o que é louvável), muitos donos de alambiques têm
destruído registros como este, sem se preocupar com o valor histórico destas
construções.