quarta-feira, 27 de julho de 2016

A Matriarca



No mês de fevereiro ganhei uma cachaça armazenada em uma madeira no mínimo inusitada: Jaqueira. Confesso que já tinha visto artesanato e movelaria com jaqueira mas tonel nesta madeira para mim foi uma agradável novidade e de tão curioso, no mês de maio aproveitei uma viagem a cidade de Teixeira de Freitas, na região do extremo sul da Bahia, para conferir de perto a produção desta cachaça.
Matriarca na vitrine do Restaurante Sinhô
   O contato com o alambique foi feito através do site divulgado na embalagem da garrafa, o que ainda é muito raro no universo da cachaça. Ter uma interface digital é algo que pode ajudar na divulgação e até distribuição das marcas de cachaça, porém esbarramos em uma questão básica que é a chegada da internet em nossas cidades e distritos. A outra questão é o uso desta ferramenta pelos produtores. Tenho visto muito material na internet produzido por degustadores, estudiosos e acadêmicos, mas os produtores, na sua maioria, ainda estão fora deste universo. A internet veio pra ficar e não dialogar com o universo digital não só não abre portas, como pode até mesmo fechar as já abertas. Fica a dica!
  Voltando a Matriarca, depois de deixar tudo agendado por email/telefone rumamos para Teixeira de Freitas- BA. No quesito comunicação nota 10 para a Matriarca!

  Ponto de partida em Teixeira de Freitas: o restaurante Sinhô, que é capitaneado por Maíra, uma das filhas de Beto Pinto, o produtor da cachaça. Aos que estiverem nesta cidade fica aqui a sugestão de conferir o cardápio feito com muita autenticidade e bom gosto, algo perceptível também na decoração do restaurante. Carnes diferenciadas como a do gado Wangus (cruzamento do nipônico Wagyu como o europeu Angus) e do Java-porco mostram que a gastronomia é algo levado a sério pela família.
  Aproximadamente quarenta minutos de rodovia entre florestas de eucaliptos e canaviais chegávamos na divisa de Caravelas com Medeiros Neto onde mais precisamente fica o alambique. Fomos recebidos pela Sr Lana, esposa de Beto, que junto com as filhas apresentou a sede da fazenda.
  A propriedade Cio da Terra possui como atividade principal a produção e extração de madeira renovável de eucalipto, cana para usinas de combustível e gado como o já citado Wangus. Beto nos contou a relação da região com produção de cachaça, a presença maioritária de produtores ainda informais e também a atividade de estrangeiros na região montando alambiques já preocupados com qualidade.
  A estrutura da Matriarca foi toda concebida a partir da referência mais próxima que possuem em relação à produção de cachaça: Salinas, que fica a 400 km de distância da cidade de Medeiros Neto. Beto bebeu tanto na fonte de Salinas que “importou” um tanoeiro de lá e dessa forma pode dar início a produção dos próprios tonéis utilizando um conceito que trouxera da experiência com o eucalipto: o das madeiras renováveis. Explicou-nos o tempo mínimo para crescimento e corte de espécies como Jequitibá, Imburana e Bálsamo e compartilhou a necessidade de se discutir a renovação de madeiras utilizadas para tanoaria. Tanto na cultura da cana quanto na cultura do eucalipto, as clonagens de laboratório permitem que variedades melhoradas sejam mais produtivas em menor tempo. Mas e no caso das madeiras para tonéis, isso seria possível? Sim, mas segundo Beto, ainda estamos engatinhando no que se refere a produção de mudas nativas clonadas.
Barris de jaqueira da Matriarca
   O projeto do alambique da Matriarca contou com a assessoria de Amazile Biagione Maia, talvez o nome mais recorrente e um dos mais competentes na assessoria técnica de alambiques. Amazile sempre foi uma entusiasta das madeiras nacionais. Beto refletiu que na região a jaqueira sempre foi madeira utilizada para tudo: movelaria, artesanato, construção civil. Como esta árvore costuma ser frondosa, é possível fazer largas ripas com ela. Contou-nos de fazer experiência com as árvores da jaca mole e dura e como esta madeira é rica em tanino. Segundo ele, os primeiros barris eram extremamente rápidos para dar cor e sabor aos destilados armazenados.
Adega da Matriarca

  Além da Jaqueira, Beto possui Imburana, Bálsamo e a prata (aço inox) para comercialização, mas possui também Jequitibá e Louro Canela para “Blendar” a cachaça. Quando pergunto que tipo de fermento utiliza, ele diz: “...agente sempre joga um pouco de amido no início...”. Um de seus objetivos no futuro é utilizar a levedura selecionada de seu próprio canavial. Segundo ele já possui uma centrifugadora para iniciar este processo, mas ainda precisa desenvolvê-lo junto com algum laboratório. 
  A estrutura da indústria é realmente monumental . Sua capacidade de produção é 500mil litros, isto mesmo, meio milhão de litros! Atualmente possuem aproximadamente 320 mil litros armazenados. Chamo a atenção de estar construindo uma fábrica de doces próximo ao alambique. A boa oferta de cana faz com que enverede por outras searas. Segundo ele, o alambique tem que estar próximo ao canavial para que a cana não “viaje” muito.

 A destilação é feita com aquecimento de caldeira, o que lhe confere maior rendimento, higiene e controle de temperatura durante o processo. Realmente um projeto muito bem feito. Quando lhe pergunto em que meses alambicam na região ele diz: “...nos meses sem a letra “r”...” segundo ele por serem mais frios.
 Chamo atenção ao fato de Beto Pinto ser um verdadeiro devoto da cachaça. Na sede de sua fazenda possui tudo que remeta a cultura da cachaça: plaquinhas, réplica de destilador e uma infinidade de rótulos de cachaça, alguns já raridades. Nota-se que as coleções e acervos pessoais são o primeiro passo de muitos produtores de cachaça que 

estabelecem antes de tudo, uma relação afetiva com o símbolo cachaça.
  Em relação aos produtos chamo atenção à sua cachaça prata que possui baixíssima acidez, referência doce tanto no olfato como paladar e um acético comum nas cachaças nordestinas. Uma bela Matriz!
  Como até agora só provei uma marca de cachaça em jaqueira , não posso compará-la com outra, mesmo assim faço aqui algumas observações:

Visual. O produto é translúcido e bem filtrado. Possui um dourado tendendo para o amarelo. Sem colarinho ou a permanência de borbulhas, apresenta viscosidade no rastro do copo que se desfaz rapidamente. Baixa oleosidade;

Aroma. Madeira úmida e folhas úmidas com um pouquinho de aniz encontrado algumas vezes no Bálsamo. A referência da cana fica em segundo plano porém de maneira harmônica (para meu paladar). O bouquet de uma forma geral não é muito ativo, o que intriga o degustador na identificação da madeira e gera a curiosidade de experimentar a cachaça no paladar.

Paladar. Há duas sensações que chamam atenção. Uma é a confirmação do aniz que pode-se confundir ligeiramente com um canela, e outra o “enxuto” que sugere cica de casca de frutas (como casca de goiaba ou cajá manga) também conhecido como nódoa. Esta última sensação sugere algo táctil mas não posso afirmar isto com exatidão. Minhas referências pessoais foram o cipó mil homens, e até mesmo a canela sassafrás, mas muito mais por um certo apimentado do que amadeiramento.

 Provei desta cachaça algumas vezes, não só estudando-a como simplesmente bebendo e outra observação que faço é que sua coloração sugere um amadeiramento intenso, o que não se confirma no paladar. Esta madeira realmente deve ser mais estudada por todos os atores do universo da cachaça.
Aos que estiverem em Teixeira de Freitas, os lugares mais indicados para a compra da Matriarca são o restaurante Sinhô, e o mercado municipal, onde a Matriarca conta com uma loja.

  Agradeço a Beto Pinto, sua esposa Lana e suas filhas pela recepção, acolhimento, atenção e carinho em nos mostrar tudo sobre a Matriarca que ao mesmo tempo pude perceber ser parte da história da família, já que o próprio nome da cachaça é uma referência à mãe de Beto Pinto e à região do descobrimento. Agradeço a Jaqueline Luz, Ananda Luz, Tarsila Luz Matraca e Marcus Matraca pela companhia, incentivo e pelos registros. Agradeço à lena, funcionária da Matriarca, que fez o primeiro e último atendimento passando informações adicionais para viabilizar a postagem. 

Ponta de Areia Ponto Final


Como não poderia ser diferente aproveito para falar um pouco de música e turismo. Aproveitamos a proximidade e conhecemos Prado, Alcobaça e Ponta de Areia, distrito de Caravelas. Esta última chama atenção pelo bucolismo. Parece que visitamos uma cidade mineira na Bahia e essa sensação é fácil de explicar já que a cidade de Ponta de Areia fora por muito tempo a última estação da antiga ferrovia Minas – Bahia. Esta ligação entre os dois estados ainda é muito forte e percebe-se traços culturais do norte de Minas no extremo sul da Bahia. Pena que as estradas de ferro sejam atualmente lembranças de um tempo passado. 
Prado

















Recomendo a visita a região, pelo valor histórico e pela beleza de suas paisagens. Fica aqui a reflexão sobre a viabilidade das estradas de ferro como atrativos turísticos em regiões como essa.


A propósito: Tarsila, o Milton também toca sanfoninha!

(Vídeo de L. martins, 19/07/2014 Ribeirão Preto)

2 comentários:

  1. O sul da Bahia e seus encantos... .Fiquei curiosa sobre o envelhecimento em jaqueira. Como sempre, belo texto, Confrade Thiago!

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  2. Muito obrigado por sua visita. Cheguei a levar esta cachaça para degustação na confraria, mas podemos marcar outra "récita". Mais uma vez obrigado

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