Uma
característica do universo da cachaça é a diversidade. Temos visto muito se
falar da diversidade da cachaça a partir das madeiras para armazenamento. Este
assunto é importante mas acaba por ofuscar um outro ponto que é a diversidade
de processos fermentativos na bebida, assunto geralmente mais debatido entre
produtores e especialistas.
A fermentação
é a etapa responsável pelo DNA da bebida. As informações referentes à matéria
prima e seu habitat (canavial/campo) estarão presentes no produto final graças
ao sucesso da fermentação.
É assim que o doce da cana, do mel, do melado de cana, rapadura, o
erval (capim/ mato molhado), o frutado (às vezes até referência de casca de
frutas como goiaba verde sugerindo uma “trava” ou “nódoa”), os legumes cozidos
(milho, canjiquinha, milho verde cozido, curau de milho, às vezes mandioca e
batata doce cozidas), o cheiro de fermentação (massa de pão), o ligeiro cítrico
confundido com azedume (bagaço de cana) estarão presentes na bebida.
Para quem
acha que isto é pouco lembro que há um repertório de sensações que misturadas
podem sugerir o medicinal, o baunilha, floral e até calda de frutas. Em uma Matriz, isto mesmo na cachaça pura/ de inox, sem amadeiramento.
Há pouco
tempo atrás era muito comum degustarmos cachaça com gosto de queimado denunciando
a presença de oléo fúsel ou furfural na bebida. O processo de queima do
canavial para facilitação do corte comprometia e acompanhava a bebida desde sua
primeira etapa, corte, até sua última etapa, a degustação. Felizmente para a
produção de cachaça de qualidade esse hábito caiu em desuso embora presente de forma ilegal.
Nota-se
portanto que a fermentação é algo a ser mais considerado no estudo dos amantes
do assunto cachaça.
Elaboração de um pé de cuba
A ideia deste
texto é além de apresentar a importância da fermentação para a sensibilidade do
degustador, colocar as matrizes (puras/inox) no seu devido lugar de importância
onde podem sim apresentar complexidade sensorial. Uma complexidade diferente da
encontrada nos amadeiramentos mas não necessariamente menor, pior, ou
secundária. Na verdade, pela ordem das das etapas, a complexidade das matrizes é
primária, fundamental até para a análise dos exemplares amadeirados.
Antes falaremos um pouco de história
Foto arquivo histórico cachaça Dama da Noite
Resumidamente a fermentação é a etapa da produção de cachaça onde as leveduras
(micro-organismos) presentes na dorna de fermentação transformam o açúcar do
caldo de cana em álcool e gás carbônico.
Do latim fermentare (ferver)a fermentação alcoólica acompanha a
humanidade no decorrer da história. A diversidade das culturas agrícolas do
globo pode ser percebida pelo produto de fermentações. A cerveja e fermentados
como os de mel e uva são testemunhos disto.
O Brasil é bem novo no assunto porém em seus quinhentos anos de história
foi apresentando ao mundo fermentados como os de milho (Aluá ou Chicha na
américa hispânica) e Mandioca (Cauim) só para falar dos mais conhecidos.
Se por um lado fermentados como os de milho vieram a se propagar e mesmo
virar destilado como o Bourbon nos EUA, outros vinhos destilados como a Tiquira
(produto da fermentação da mandioca) ficaram restritos à sua área original (Maranhão).
Fermentada a partir das borras do melado (aguardente) ou diretamente do
caldo de cana (Cachaça) as aguardentes de cana tem conquistado cada vez mais
amantes pelo mundo e chamo atenção para um fato:
A cana enquanto matéria prima possui uma característica bem marcante: é
extremamente doce,o que lhe confere
um frescor sensorial muito diferente de outras matérias primas que ricas em
amido ainda precisam passar pela transformação deste componente em glicose,
caso do Agave da Tequila ou dos cereais do Uísque. Na verdade no caso do Uísque
muito têm se associado o “defumado” da bebida somente aos barris de carvalho para
armazenamento sem se considerar que uma das etapas da elaboração da fermentação
dos cereais é a interrupção da germinação destes cereais através de fumaça
método conhecido como “peat”. Aos interessados recomendo o seguinte vídeo:
Bem, mas se o blog fala de cachaça porque um vídeo sobre uísque? Como já
afirmado a matéria prima da cachaça é utilizada praticamente in natura já que
só sofre a extração do caldo. Não é cozida ou defumada. É crua, virgem, fresca!
Este é um ponto importantíssimo: o brasileiro de estatura mediana ( como
diz Edu Lobo) em 99 por cento dos casos já bebeu um caldo de cana ou mesmo já
teve a oportunidade de prová-la no próprio canavial.
Esta é uma referência
sensorial crucial para análise das matrizes. Até porque na boca do povo ela é cana, caninha, pau do capuxo, suco de cana...
Na próxima postagem apresentaremos diferentes tipos de fermento. O assunto é abrangente portanto não percam o tempo da fermentação.
Este blog se propõe a promover não só a música e a cachaça de alambique.
Na verdade estamos falando de cultura brasileira. Junto com a música e a
cachaça acabamos promovendo as diferentes regiões de nosso imenso país.
Um tema que deve que ser mais considerado na agenda dos administradores
públicos, secretários de turismo, eventos, cultura, é que a cachaça e a
música promovem o turismo.
O turismo de alambique já é praticado em diversos locais do Brasil como
nas rotas mineiras (Estrada Real, Serra da Moeda, Salinas), nas Gaúchas e mesmo
em locais como a chapada Diamantina na Bahia. Talvez a cidade de Paraty seja um
ótimo exemplo de como o poder público pode ser um aliado em promover o turismo
de alambique.
Na maioria dos casos este turismo não é sistematizado junto com o poder
público, o que que poderia alavancar ainda mais o desenvolvimento humano das
regiões (mais postos de trabalho, mais infra- estrutura, mais promoção...)
Antes de falar dos equipamentos da Tapinuã entraremos na seara de
apresentar a cidade de Silva Jardim.
Pedalando da BR101
No ano de 2015 tivemos a oportunidade de viajar de bicicleta de Rio
Bonito a Aldeia Velha, distrito mais conhecido por seu turismo rural, suas
cachoeiras, e pela cena de Forró, Reggae e Rock que tem se desenvolvido na
região. A cachaça " da viagem" foi a Tapinuã que consegui
encontrar no bar do "Linguiça" que além de dono de bar é
informalmente um pouco "Centro de informações turísticas de Aldeia
Velha" para quem chega no vilarejo.
E naquele bate-papo descomprometido ficamos sabendo muita coisa de Silva
Jardim. Ficamos sabendo da trilha que liga Aldeia Velha ao encontro dos
Rios em São Pedro da Serra (Friburgo). Ficamos sabendo da produção de Palmito
Jussara e principalmente o Pupunha, sua imensa reserva de Mata Atlântica e o
trabalho de conservação da espécie Mico Leão Dourado outrora quase extinto.
É desta forma que peço a você leitor que dê um confere no vídeo
institucional da prefeitura de Silva Jardim (2014) de promoção do turismo na
região. Tenho certeza que você degustará esta matéria com outros olhos.
Instalações de Equipamentos
As instalações da Tapinuã dos Reis As instalações da Tapinuâ) confirmam sua vocação
de empresa familiar. Paulo da Tapinuã, engenheiro aposentado adquiriu a
propriedade com um amigo e ali montou uma pousada de turismo rural. Como bom
mineiro (Itajubá) cultiva os valores regionais de doces feitos com frutas da
propriedade, um queijo regional e obviamente cachaça.
Projeto aproveitando o relevo do terreno
O engenho é todo construído em gravidade. Possui um destilador de fogo
direto (Sta Efigênia de coluna e deflegmador) adaptado para um fogareiro a gás.
Panela de 200 lts de cobre com pré aquecedor.
Paulo nos contou que depois que o fiscal do MAPA orientou que fechasse o espaço da destilação optou em utilizar fogo do botijão à gás que passou a compensar já que com este
obteve maior controle do aquecimento da panela. Adaptações de cunho prático para preservar o corpo já que o trabalho com a lenha é bem cansativo (principalmente para a coluna).
Sua safra geralmente dura três meses , chegando a dar três alambicadas
por dia e sua capacidade de produção é em torno de 10.000 litros por ano de
cachaça padronizada para 40°gl. Embora
pequeno o projeto é bem funcional.
A justificativa para seu rendimento também está no fato de padronizar o brix de
fermentação em 18° e controla-lo em no máximo 8° dentro da
dorna. Sendo assim produz pouco mais de vinte litros por alambicada.
Matéria – Prima e Moagem
Paulo possui canas que conseguiu com o SNA (Sociedade Nacional de
Agricultura) via sindicato rural em Cordeiro na serra fluminense. Ainda não é
auto - suficiente tendo que complementar sua produção com cana de produtores de
Silva jardim .
Armazenamento
Cachaça Ouro premiada em Concurso antes de ter Registro no MAPA
Sua adega é simples com capacidade de armazenamento de 14.000lts no aço
inox e nas madeiras possui a presença
exclusiva do carvalho (15 barris de 200tls).
Padronização do teor do Alcoólico
Caro leitor você não imagina a
dificuldade que foi chegar a um consenso em relação a este item. Segundo Paulo é impossível que uma safra sua seja absolutamente igual a outra. Exemplifica que a cachaça muda constantemente porque ele mesmo têm procurado melhorar sua produção ano a ano. Portanto ele o termo identidade ao invés de padrão.
Uma característica chama atenção: O sítio Tapinuã possui grande oferta de água (tem uma pequena queda d’agua dentro da
propriedade) e é desta que utiliza para "padronizar" seu destilado tendo a branca
43°GL e a amadeirada (envelhecida) 41°GL.
Degustação
Branca
Possui uma característica marcante no paladar: Na minha análise um
ligeiro mineral. O doce da matéria prima está presente tanto no nariz como no
paladar com uma lembrança floral que perde para um acético. Em algumas
degustações mais técnicas que fiz pude perceber a referência de melado de cana de
açúcar . É bem coerente do olfativo para o paladar. Visualmente não apresenta
persistência de borbulhas. Acidez controlada no sensorial com baixíssima acidez
pela análise química.
Ouro (carvalho)
A referência do tabaco, do defumado são bem intensas. O baunilha sugere
até mesmo um chocolate ou calda de doce com canela. Bala toffe de café. Aos que
gostam de amadeiramentos intensos eis uma boa opção. Acidez controlada e bem
agradável. Foi a que mais bebi em nossa visita. Apesar de preferir as brancas,
a umidade da chuva, o tempo mais frio foram convidativos para o carvalho.
Fermentação
Utiliza de fermento Fleischamn para iniciar o processo e posteriormente
continua apenas com as leveduras predominantes do meio.
Próximo Capítulo
Acredito que já conseguiram pegar o espírito da produção da Tapinuã. Na próxima postagem falaremos bastante de fermentação para posteriormente apresentarmos nossa experiência.
Como começamos este capítulo falando de turismo de alambique seguem algumas imagens da pousada da Fazenda Tapinuã que como diz o Paulo tem a cachaça à disposição dos hóspedes.
Nas
próximas postagens falaremos da Cachaça Tapinuã dos Reis produzida na
localidade de Bananeiras-Silva Jardim- RJ e sua interessante trajetória
que embora recente têm muito a acrescentar para o universo da cachaça.
No mês de
dezembro de 2016 estivemos no alambique da Tapinuã dos Reis que é capiteaneado pelo
Sr Paulo Vieira e aproveitamos a visita para fazer um experimento com
fermentação. Por isso falaremos um bocado desta etapa crucial para a identidade
da cachaça.
A fermentação é assunto recorrente entre produtores
mas nem sempre considerado pelos apreciadores/degustadores geralmente mais
focados na ponta do processo (armazenamento e envelhecimento/ amadeiramento).
Outro
ponto que tangenciaremos será a realidade da informalidade assunto que ainda é
polêmico e precisa ser considerado não apenas nos termos da legislação mas
sobre a perspectiva dos produtores, afinal eles são os protagonistas do fazer
cachaça.
Esta
postagem tem a colaboração do amigo e confrade (membro da Confraria de Cachaça
Copo Furado do Rio de Janeiro) Paulo Machado que esteve no alambique da Tapinuã
dos Reis comigo e se lançou a pesquisar, registrar com fotos e "arregaçar
as mangas" viabilizando a postagem e nosso experimento com fermentação.
Ressalto
que na reunião aberta da Confraria de Cachaça Copo Furado do mês de maio o Sr
Paulo Vieira, rebatizado “Paulo da Tapinuã” passará pela cerimônia de Cananização
já que fora eleito nas últimas indicações para membros da Copo Furado.
Além de
amigo, Paulo da Tapinuã passa a ser um irmão na cachaça, um Confrade.
Algo a
coroar ainda mais seu trabalho e amor pela nossa tão estimada bebida.
Com
licença aos demais leitores, Paulo da Tapinuã:
“Unidos Beberemos Sozinhos Também”
Uma breve retrospectiva
No ano de
2008 tive a oportunidade de promover um workshop patrocinado pela Cachaça
"Bendita" de Dona Euzébia- Cataguazes- MG, da qual fui representante
no Rio de Janeiro, chamado “Bate Papo, Bota Pinga” onde além de orientar a
degustação da Bendita, apresentava as principais diferenças da cachaça de
alambique para a cachaça de coluna e as etapas de produção de cada tipo.
Dentre os
presentes estava o Sr Paulo Vieira que vez ou outra apresentava uma pergunta de
cunho prático surpreendendo a mim e aos demais presentes. Na época Paulo
tinha acabado de montar seu alambique e estava começando as primeiras
destilações.
Passado
algum tempo (2009) o Sr Paulo Vieira começou a frequentar as reuniões da Confraria
de Cachaça Copo Furado, grupo do qual sou membro. Lá estava o Sr Paulo buscando
novidades, informações e sobre tudo aprimorando seus conhecimentos.
Nessa
ocasião que pude experimentar pela primeira vez sua cachaça, a Tapinuã dos
Reis. Lembro-me que na ocasião foram levantados inúmeros elementos que poderiam
ser melhorados na sua cachaça.
Paulo
Vieira acolheu as críticas, buscou assessoria técnica especializada e foi aos
poucos transformando aquele produto com muito carinho.
Até aí
nada muito diferente de várias histórias de cachaça se não fosse a inquietude
de seu produtor.
O Pulo do Gato ou um pulo muito alto para um Gato?
Em 2010
Paulo da Tapinuã resolve inscrever um exemplar de sua safra no IV Concurso de
Avaliação da Qualidade da Cachaça promovido pelo Instituto de Química da
Universidade de São Paulo, a USP, detentora de um dos melhores laboratórios de
análise química para cachaça do país.
Obtém a
medalha de prata no concurso (segundo lugar).
O que é
interessante é que a Cachaça Tapinuã dos Reis até então não tinha selo do MAPA
(Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento). Isto mesmo, a cachaça
tirou o segundo lugar em um concurso de âmbito nacional, estava quimicamente e
sensorialmente pronta, mas legalmente não poderia ser comercializada.
Este
resultado apontava para realidade das cachaças sem registro no MAPA e a possibilidade
destas apresentarem qualidade química e sensorial.
O Tiro que Saiu pela Culatra
A partir deste momento Paulo da Tapinuã tinha um dilema: Alguns mil
litros de cachaça de qualidade que não podiam ser vendidos. Como escutei dele
certa vez: "Cachaça é um líquido que não tem liquidez". Imagina!
De 2010 a 2016 Paulo da Tapinuã procurou adequar seu
alambique às exigências do MAPA e pode-se dizer que foram seis anos de muita
persistência (pra não dizer teimosia), paciência e dedicação que foram coroados
no final de 2016 com a aprovação de suas instalações pelo MAPA.
Foi no clima de "menino que passa de ano" que fomos ao seu alambique
em um chuvoso 14 de dezembro de 2016.
Se quer conhecer ainda mais a cachaça e esta história, não perca a próxima postagem!
Para melhor aproveitar a farta agenda de feriados deste ano seguem algumas dicas para iniciantes no
universo da cachaça. Alguns anos de experiência me fazem compartilhar estas
dicas que não são necessariamente um manual mas que seguidos, podem evitar
ressacas!
1. Visite o alambique preferencialmente no período de safra
Visitar um alambique é sempre interessante mas visitar um
alambique em pleno funcionamento é uma experiência para os sentidos. O período
de produção pode variar de região para região. No nordeste é possível encontrar um engenho alambicando no
mês de Janeiro ou fevereiro algo bem improvável na região sudeste por exemplo.
Em alguns casos mesmo fora do período de safra o produtor alambica ou para
poder fazer o corte de um talhão de cana ou até mesmo para realambicar uma cachaça
que por algum motivo julgou não estar “no padrão”.
2. Visite um alambique de uma cachaça que já conhece (experimentou)
Quem estuda o universo da cachaça tem sempre curiosidades
sobre a produção de uma cachaça que já bebeu. A roda D’agua da Corisco( Paraty- RJ), os
Paróis de Jatobá da Colombina (Alvinópolis- MG), o zelo da Werneck (Rio das Flores- RJ) ou o equipamento Tromba de
elefante da Canarinha (Salinas- MG) já são elementos para
tentar conhecer de perto aquilo que experimentamos tão longe do alambique.
3. Tem que ser bom para as duas partes
Sabemos que nem sempre dá para viajar durante os dias de
semana mas lembramos que um alambique é uma unidade produtora, na maioria das vezes
familiar. Parar no domingo pela manhã na porteira de um alambique sem aviso
prévio pode ser bem inconveniente. Por estas e outras fique atento à próxima
dica.
4. Agende sua visita
Os produtores de cachaça costumam receber apresentando a
unidade produtora, falando de sua relação e histórico com a bebida e promovendo
uma degustação de suas safras. Os rótulos sempre têm indicações de contato como
telefone ou email. Planejar a visita é sempre melhor.
Exemplo: Se você não tiver nenhum contato com as cachaças de
Paraty e quiser ter esta primeira experiência, o já tradicional festival da Pinga de Paraty
que acontece sempre na terceira semana de agosto é uma ótima oportunidade porém
se você quiser conhecer os alambiques esta pode não ser a melhor época pois os produtores
destinam toda sua atenção e produção para abastecer os stands do festival. Já
tive a oportunidade de chegar em alambique no festival da pinga e produtor não
poder dar muita atenção por estar colando rótulos em garrafas.
Importante: Procure ser atento ao nome das pessoas com quem
fala. Falou com o João Luiz da Magnífica ou com o Dimas (seu funcionário há
tempos?). Isto é será muito importante quando estiver mais próximo do
alambique.
5. Geografia
Poucas coisas nos ensinam tanto a divisão geo-política de
nossa cidades quanto a cachaça. É importantíssimo conhecer o nome da
localidade, do distrito e em alguns casos da comunidade onde a cachaça é feita.
Com isso vamos observar que muitas cachaças de Salinas – MG são de Novo Horizonte
e região. Portanto fique atento!
Exemplo: A citada Magnífica, é produzida em Vassouras no
estado do Rio de Janeiro mas seu acesso é muito mais fácil pela vizinha Miguel
Pereira.
Importante: As distâncias vão se tornando cada vez maiores
quanto mais para a região norte -nordeste. Erros de comunicação ou
interpretação podem fazer a viagem aumentar quilômetros.
6. Disse que vai, vá!
O produtor rural tem uma rotina pautada pelo trabalho. O
fato de seu trabalho ser do lado de casa não quer dizer que sempre possa parar
para receber um visitante. Por isso se marcou por telefone ou email (whatsapp
tem funcionado muito nos interiores) procure ser pontual. A pontualidade e a
palavra são atributos valiosos principalmente no mundo rural. Se disse que vai,
vá que eles estarão te esperando. Desmarque apenas em casos extremos (chuva,
doença, imprevistos). Como escrito no item 4 geralmente os produtores se preparam para receber os visitantes.
7. O tempo da roça é outro
Isso mesmo! No mundo rural menos é mais. É muito comum em
regiões produtoras existirem dois alambiques
muito próximos. Vai por mim, escolha um visite em um dia e no seguinte
visite o outro. Fazer as coisas correndo não tem nada a ver com o ritmo rural e
mesmo com o ritmo da cachaça. Imagina que você pode dar a sorte de chegar em um
engenho e eles estarem alambicando ou o alambiqueiro pedir para você acompanhar
a destilação até o corte da cauda? Meio deselegante um visitante dizer não né?
Os produtores de cachaça costumam ser bons de papo (Maria
Isabel em Paraty -RJ, Nando Chaves em Cel. Xavier Chaves só para citar dois
emblemáticos) por isso reserve este tempo. A prosa é tão sagrada quanto o
brinde. Se puder articular uma hospedagem próximo ao alambique melhor ainda. Dê
preferência para o turno da manhã onde o alambiqueiro certamente não terá seu
horário de trabalho alterado por conta de sua visita. Se tiver que fazer na
parte da tarde vá depois do almoço, mas no fim de tarde (16hs por exemplo) já é
fim de jornada de trabalho nesses interiores.
8. Se beber não dirija mesmo
Evite ao máximo dirigir pós alambique. Se tiver que fazê-lo, prepare-se bebendo menos e se hidratando bastante fazendo posteriormente uma refeição reforçada como um almoço e descansar. Alambique
é um ótimo programa, evite ir sozinho até para poder dividir essa responsabilidade
com outro motorista.
9. Sempre temos que lembrar de alguém
Mesmo que esteja com
a adega cheia é bom lembrar do item 3. Comprar alguma coisa no alambique é
super de bom tom. Se não quiser levar cachaça( como assim?) sempre têm alguma
pimenta ou outra coisa que no mínimo será bom para estabelecer uma boa relação
com aqueles que já abriram seus barris e estão te recebendo.
OBS. Tenho o hábito de pedir o autógrafo dos alambiqueiros.Recomendo. Isto personaliza a cachaça e valoriza ainda mais o trabalho destes!
10. As Águas vão rolar e temos o dia seguinte né
É bom não exagerar . As lembranças quando são boas não dão ressaca.
Nessas ideias que nos batem meio que do nada (sou acometido
por elas direto) este ano sonhei com uma folia de reis que saía de Laranjeiras
e ia até Botafogo. Conversei com algumas pessoas a fim de resolver a folia do
lado de cá, laranjeiras, já que do lado de lá já tem sua folia. Confesso que
não tive o êxito que queria mas pude conhecer um pouco melhor a famosa folia do
Santa Marta.
Palhaços da Folia
O grande Luis Cláudio (sim o Muca) foi quem me colocou em
contato com Juninho da folia. Juninho me explicou que seu avó veio de Miracema
(noroeste fluminense na divisa do estado do Rio com Minas) e se estabeleceu na
Ilha do Governador. Da ilha do governador migrou para a comunidade do Santa
Marta levando também o folguedo.
Sr Luizinho (sanfoneiro) e Mestre Riquinho
Segundo Juninho , as folias do estado do Rio tendem a
encerrar suas atividades no período de reis mas as folias da cidade do Rio de
Janeiro encerram as atividades no dia vinte de janeiro, por conta do padroeiro
da cidade, São Sebastião.
Enfim, esta não é uma “matéria” sobre a folia. É muito mais
o compartilhar de uma experiência com um folguedo de origem rural que já foi muito mais presente
e hoje é feito por foliões resistentes e que numa cidade tão urbana como o Rio ainda mantêm o hábito de visitar os donos da casa.
Coloco aqui algumas observações que acredito muito interessantes do modo de fazer cachaça de Nando Chaves:
Foto : arquivo de Nando Chaves
Canavial
Utiliza majoritariamente cana própria. O que não produz é de vizinhos próximos que acabam cultivando a mesma variedade. Nando possui muito cuidado com sua matéria-prima. Em conversa com ele ao perceber que havia uma flor de cana no canavial (pendão) ele afirma: “...aquelas canas precisam ser cortadas pois ao produzir a flor, a energia toda do caule da planta é dirigida para manter a flor viva e com isso perde sacarose.
Sua variedade de cana fora adquirida através da universidade de Viçosa com um produtor de Cataguases. A variedade é originária da cidade de Coimbatore na Índia.
Moagem
Além da bucólica roda d’água o Engenho Boa Vista possui uma moenda elétrica para que nos períodos em que todas as dornas estiverem fermentando possa auxiliar a moagem da primeira que é mais lenta. Nando desenvolveu uma área de armazenamento de cana toda feita de bambus o que dá um visual rústico porém funcional e barato. O bagaço de cana é separado em secos (mais antigos) e úmidos (mais novos). Com isso controla a combustão do fogo para a fornalha.
Moinho de pedra onde prepara o fubá
Fermentação
Utiliza fermento caipira com milho criolo (não híbrido) plantado no meio do canavial. Com isso ele consegue fazer com que os micro-organismos que deseja no flavour (tanto leveduras como bactérias) estejam presentes no milho que vai fermentar o caldo.
Um exemplo da relação de Nando com o meio ambiente é a observação em relação aos insetos que se manifestam “interessados” na fermentação. Segundo ele se tiver mosca varejeira ou pulgão de canavial rondando a área de fermentação é sinal de que o processo está acontecendo harmonicamente porém se ver alguma drosófila (mosquinha da banana) começa a se preocupar com a acidez do caldo.
Algo que achei interessantíssimo é que ao se aproximar das dornas de fermentação para me mostrar o caldo abaixou o tom de voz pedindo para evitar falar próximo ao fermento até porque tinha perdido um pé de cuba há poucos dias.
Suas dornas de fermentação são caixas de aço inox encaixadas em tanques de alvenaria que era onde antigamente o caldo era fermentado.
Destilação
Utiliza um equipamento de fogo direto com capelo e serpentina. O modelo é sem deflegmador mas possui pratos internos no comprimento da coluna. Nando encomendou a coluna orientando a empresa construtora em relação ao modelo que queria, pois segundo ele tinha que ser do mesmo sistema do anterior. Quando lhe perguntei sobre destiladores ele disse: “...tenho algumas panelas e algumas colunas em um depósito aqui, não jogo nada fora..”
Aquecimento direto
Como já escrito, controla a temperatura da fornalha alimentando-a com diferentes tipos de bagaço. O mais seco será utilizado para levantar o início do fogo. Ao começar a destilar o coração utiliza um bagaço mais úmido que lhe permite controlar a temperatura e alambicar a fogo baixo. Isto nos dias atuais é cada vez mais raro com a maior utilização dos alambiques a vapor de caldeira onde o aquecimento é gradual e exige do alambiqueiro abrir e fechar os registros de alimentação de água e eventualmente mais bagaço ou lenha para a caldeira. Até pouco tempo Nando alambicava com uma panela sem termômetro e como teve que mudar de panela a empresa acabou adaptando um termômetro que ele diz ser até dispensável pelo tanto que conhecem o forno e o destilador. Com isso Nando afirma:
“...o cara pode ter feito curso de mestre alambiqueiro no melhor curso existente e ser muito bom mas aqui ele precisa alambicar nos moldes do Séc. XVIII. Por isso se chegar alguém aqui querendo fazer o serviço de alambiqueiro, a primeira função que terá que fazer é carregar bagaço pois ali ele vai entender o consumo do forno...”
Segundo Nando, sua taxa de cobre é muito baixa porque alambica todo ano e ressalta a importância disso para que o cobre seja sempre baixo independente de filtro para este tipo de metal. Para este tipo de equipamento possui um rendimento muito bom onde tira 100lts por cada alambicada. A panela possui 600 lts de caldo.
Descanso
Sua cachaça antigamente repousava em uma cisterna subterrânea de pedra parafinada. Com a exigência do ministério da agricultura teve que adquirir dornas de aço inox para sua cachaça. Atualmente pensa em transformar o espaço da cisterna em uma área de armazenamento de tonéis de aço inox.
Não possui tonéis de madeira, mas isto não significa que não repouse sua cachaça, pois possui diferentes cachaças brancas todas separadas por safra .
Engarrafamento
Possui dois tipos de embalagem, uma garrafa de 670 ml onde vende a safra do ano anterior, sendo portanto sua cachaça mais nova e as de safras mais antigas nas garrafas reutilizadas de vinho de 750ml, com rótulo e contra-rótulo muito mais simples. Esta última também é vendida em garrafa de 670ml em um rótulo vermelho. A garrafa que a princípio seria mais barata, utiliza para a bebida mais nobre, agregando valor com lacre tradicionalmente metálico e rolha de cortiça. Um conceito tradicional a um produto tradicional. Sabiamente agrega valor. Como disse possui dos três rótulos um em embalagem de papel comum e outros dois com uma belíssima arte influenciada por Dona Cida Chaves autora do texto que apresenta a cachaça no contra-rótulo.
Distribuição
Cinco mil litros de sua produção são destinados a “Santo Grau” que se mostrou uma importante parceira neste processo de valorização de engenhos históricos. Nando contou-nos dos desafios de trabalhar com uma empresa que se tornou multi-nacional e hoje por exemplo consegue distribuir a Santo grau Séc. XVIII em todos os free-shops de aeroportos do Brasil. Para ele isto seria impensável sozinho. O que é interessante é que a Santo grau consegue ter um produto conceitual, agregando valor e reconhecendo um lado cruscial para o universo da cachaça: a cultura. É importante citar o trabalho da Santo Grau pois distribuir cachaça em um país como o nosso com tantas questões de infra-estrutura é uma missão e tanto. Bom ver que a melhor negociação é aquela em que todos saem ganhando.
Para os produtores fica o exemplo de que ter um cliente fixo com capacidade de distribuição pode ser uma boa solução para evitar cachaça "encalhada" em barril.
Aproximadamente quarenta e cinco mil litros são engarrafados e distribuídos por Nando como Cachaça Séc. XVIII na região e para todo o país, outra grande responsabilidade.
A degustação “ Pimenta que não arde, cachorro que não morde, cachaça que não é forte não resolve”
A cachaça Séc. XVIII talvez seja o melhor exemplo de cachaça rústica que tanto tenho abordado neste blog. Aroma adocicado lembrando cana colhida na hora, com o frescor de um dia de chuva. Sente-se um frescor vivo no aroma. No paladar a confirmação do doce com um ligeiro metálico que pode ser confundido com um mineral. Servida no copo já demonstra seu tradicionalismo em um lindo rosário. Coisa fina, coisa da antiga. Chama atenção a persistência destas borbulhas e a viscosidade viva que possui. Isto principalmente na cachaça mais nova.
No alambique as mais novas que experimentamos foram a safra do ano (2015) e a que batizei como da “semana” (agosto de 2016). Todas estas referências se tornam mais amenas nas cachaças com mais tempo, mas sem que sumam , estão lá mostrando o trabalho do tempo, aperfeiçoando uma matriz que já começa muito bem.
Nando serviu-nos uma safra de 2014 espetacularmente doce, segundo ele reflexo de um ano de safra com pouquíssimas chuvas. Retro-gosto de cana e fundo de copo de cana lembrando o doce.
Ressalta-se que é uma cachaça simples (possui muito corpo) e este é seu maior atributo pois enquanto cachaça branca traz todas as referências que se procuram na imagem inconsciente da cachaça branca (cheiro de bagaço de cana ou cana, milho, doce, frutas, erval, capim, fermento...). Ótimo exemplo de cachaça com graduação alcoólica alta e controle de acidez 47 e 48° GL.
Aos que querem se aproximar mais das branquinhas recomendo um experiência: degustar a Século XVIII nova (rótulo azul) comparando-a com o exemplar de mais de dois anos (rótulo vermelho) e com a Santo Grau Coronel Xavier Chaves. Uma experiência que rende muito aprendizado sobre padronização, graduação alcoólica, acidez e certamente a estética da cachaça branca.
Fundo de copo (acabando a degustação)
Nestes dias em que percebemos a força do mercado e “...da grana que ergue e destrói coisas belas... ( Caetano Veloso)” dá orgulho beber uma cachaça que não está nem um pouco interessada em seguir a moda ou a tendência dos habituais 38°, 39° no máximo 42°GL de graduação alcoólica. Lembro que as cachaças de Salinas tinham geralmente no mínimo 45°GL e o que vemos hoje é a expansão das graduações baixas, salvo exceções de produtores que seguem a mesma linha tradicional que Nando Chaves ( a Havana/ Anísio Santiago/ Havaninha possuem 48°) ou a nova "Bruta" da cachaça Mil Montes de Faria Lemos- MG.
O Engenho Boa Vista também traz o debate acerca de alambiques históricos. Até que ponto é necessário que mudem sua produção? Até que ponto precisam se adequar ou a legislação é que tem que contemplar a trajetória destes, criando exceções? Imaginemos o quanto alambiques como o do Sr Anísio Santiago (Havana- Salinas), que não é secular, tiveram que se adequar? Será que algum dia aquela destilação com "tromba de elefante" pode vir a ser proibida alegando-se outros padrões de produção e consumo? Temos vários alambiques com mais de cem anos em operação e esta característica é uma importante forma de valorizar a unidade produtora e colocá-la como testemunho da mudança das formas de fazer cachaça. É importante refletir sobre isto neste momento em que padrões têm sido estabelecidos.
Rústica Mesmo!
Gostou do estilão forte da Séc XVIII? Aos que gostam das graduações alcoólicas mais elevadas em cachaças brancas (sou fã) fica uma relação para estudo que acredito básica de se ter em casa:
Rainha- Bananal PB (aguardente)
Aroeirinha- Porto Firme MG
Vitorina Branca – Fortuna de Minas
Cachaça Cachoeira de Cachaça – Vassouras- RJ
Mil Montes “Bruta”- Faria Lemos- MG
Corisco- Paraty- RJ
Saideira
Nando possui um compromisso com seus clientes, com a reputação de sua família e com o próprio tempo pois representa a história prática de fazeres que remetem ao Séc. XVIII. Lembro que quando o produtor abaixa sua graduação alcoólica ele possui um maior rendimento em termos financeiros e por isso o custo benefício da cachaça Séc. XVIII a incluiu em um produto de comércio justo. Possui um preço totalmente compatível com sua história e com o trabalho dos envolvidos.
Nando chaves orgulha-se de gerenciar o engenho há 25 anos e diz:
“...Thiago, desde que me entendo por gente, não houve um ano que não se fizesse cachaça neste engenho..”.
Para quem sabe o trabalho de produzir cachaça isto é um título para poucos.
Como diz o texto de dona Cida Chaves: “....o tempo pede paciência e humildade. Poucos litros de cada vez para a qualidade acima de tudo. Isto faz a diferença...”
O tempo não se engana mesmo!
Agradecimentos
Fica o primeiro agradecimento ao gaúcho Moraes, pessoa fundamental para que eu tivesse a breve experiência de produzir a cachaça Tio Anastácio em Saquarema- RJ. Desde que me entendo amigo de Moraes que ele fala do "Nandinho". A paixão por cavalos e cachorros além de um grande amigo comum ( o agrônomo Rondon) aproximou estas duas pessoas. Foi assim que fui à Séc. XVIII conhecendo muito de Nando e praticamente com uma carta de apresentação de Moraes.
A sr Rubem Chaves e Dona Cida Chaves. O primeiro, paciente, quieto, de sorriso discreto e super acolhedor, a segunda uma pessoa encantadora talentosa com quem conversamos muito sobre política, história, feminismo, arte e literatura. Tivemos a honra de ser agraciados por Dona Cida com alguns de seus livros. Dona Cida, esteja certa de que meus alunos se encantaram com a Sossô.
Livros de autoria de Cida Chaves
A Jaqueline Luz, companheira que sempre registra as fotos e vídeos. Amante e conhecedora destes interiores brasileiros;
A Nando Chaves que nos recebeu super bem com sua "levitação sem meditação" (procurem saber) e que além de dar uma aula sobre cachaça é capaz de contar grandes causos e histórias, de sua vida e sua região. É o garoto propaganda que nos faz procurar a cachaça do Nando por mais que tenham eles sete gerações de história com cachaça.
A você que acompanhou estes relatos um abraço forte como uma Séc. XVIII.
Dedico este último vídeo a Dona Cida Chaves a quem fiquei devendo uma prosa de viola. Esta é a sua cozinha Dona Cida antes do café!