quinta-feira, 19 de janeiro de 2017

Pioneirismo e diferencial


Coloco aqui algumas observações  que acredito muito interessantes do modo de fazer cachaça de Nando Chaves:

Foto : arquivo de Nando Chaves

Canavial

Utiliza majoritariamente cana própria. O que não produz é de vizinhos próximos que acabam cultivando a mesma variedade. Nando possui muito cuidado com sua matéria-prima. Em conversa com ele ao perceber que havia uma flor de cana no canavial (pendão) ele afirma: “...aquelas canas precisam ser cortadas pois ao produzir a flor, a energia toda do caule da planta é dirigida para manter a flor viva e com isso perde sacarose.
Sua variedade de cana fora adquirida através da universidade de Viçosa com um produtor de Cataguases. A variedade é originária da cidade de Coimbatore na Índia.



Moagem

Além da bucólica roda d’água o Engenho Boa Vista possui uma moenda elétrica para que nos períodos em que todas as dornas estiverem fermentando possa auxiliar a moagem da primeira que é mais lenta. Nando desenvolveu uma área de armazenamento de cana toda feita de bambus o que dá um visual rústico porém funcional e barato. O bagaço de cana é separado em secos (mais antigos) e úmidos (mais novos). Com isso controla a combustão do fogo para a fornalha.

Moinho de pedra onde prepara o fubá



Fermentação

Utiliza fermento caipira com milho criolo (não híbrido) plantado no meio do canavial. Com isso ele consegue fazer com que os micro-organismos que deseja no flavour (tanto leveduras como bactérias) estejam presentes no milho que vai fermentar o caldo. 
Um exemplo da relação de Nando com o meio ambiente é a observação em relação aos insetos que se manifestam “interessados” na fermentação. Segundo ele se tiver mosca varejeira ou pulgão de canavial rondando a área de fermentação é sinal de que o processo está acontecendo harmonicamente porém se ver alguma drosófila (mosquinha da banana) começa a se preocupar com a acidez do caldo. 
Algo que achei interessantíssimo é que ao se aproximar das dornas de fermentação para me mostrar o caldo abaixou o tom de voz pedindo para evitar falar próximo ao fermento até porque tinha perdido um pé de cuba há poucos dias.
Suas dornas de fermentação são caixas de aço inox encaixadas em tanques de alvenaria que era onde antigamente o caldo era fermentado.


Destilação

Utiliza um equipamento de fogo direto com capelo e serpentina. O modelo é sem deflegmador mas possui pratos internos no comprimento da coluna. Nando encomendou a coluna orientando a empresa construtora em relação ao modelo que queria, pois segundo ele tinha que ser do mesmo sistema do anterior. Quando lhe perguntei sobre destiladores ele disse: “...tenho algumas panelas e algumas colunas em um depósito aqui, não jogo nada fora..”
Aquecimento direto

Como já escrito, controla a temperatura da fornalha alimentando-a com diferentes tipos de bagaço. O mais seco será utilizado para levantar o início do fogo. Ao começar a destilar o coração utiliza um bagaço mais úmido que lhe permite controlar a temperatura e alambicar a fogo baixo. Isto nos dias atuais é cada vez mais raro com a maior utilização dos alambiques a vapor de caldeira onde o aquecimento é gradual e exige do alambiqueiro abrir e fechar os registros de alimentação de água e eventualmente mais bagaço ou lenha para a caldeira. Até pouco tempo Nando alambicava com uma panela sem termômetro e como teve que mudar de panela a empresa acabou adaptando um termômetro que ele diz ser até dispensável pelo tanto que conhecem o forno e o destilador. Com isso Nando afirma:
“...o cara pode ter feito curso de mestre alambiqueiro  no melhor curso existente e ser muito bom mas aqui ele precisa alambicar nos moldes do Séc. XVIII. Por isso se chegar alguém aqui querendo fazer o serviço de alambiqueiro, a primeira função que terá que fazer é carregar bagaço pois ali ele vai entender o consumo do forno...”
Segundo Nando, sua taxa de cobre é muito baixa porque alambica todo ano e ressalta a importância disso para que o cobre seja sempre baixo independente de filtro para este tipo de metal. Para este tipo de equipamento possui um rendimento muito bom onde tira 100lts por cada alambicada. A panela possui 600 lts de caldo.

Descanso
Sua cachaça antigamente repousava em uma cisterna subterrânea de pedra parafinada. Com a exigência do ministério da agricultura teve que adquirir dornas de aço inox para sua cachaça. Atualmente pensa em transformar o espaço da cisterna em uma área de armazenamento de tonéis de aço inox.
Não possui tonéis de madeira, mas isto não significa que não repouse sua cachaça, pois possui diferentes cachaças brancas todas separadas por safra .

Engarrafamento

Possui dois tipos de embalagem, uma garrafa de 670 ml onde vende a safra do ano anterior, sendo portanto sua cachaça mais nova e as de safras mais antigas nas garrafas reutilizadas de vinho de 750ml, com rótulo e contra-rótulo muito mais simples. Esta última também é vendida em garrafa de 670ml em um rótulo vermelho. A garrafa que a princípio seria mais barata, utiliza para a bebida mais nobre, agregando valor com lacre tradicionalmente metálico e rolha de cortiça. Um conceito tradicional a um produto tradicional. Sabiamente agrega valor. Como disse possui dos três rótulos um em embalagem de papel comum e outros dois com uma belíssima arte influenciada por Dona Cida Chaves autora do texto que apresenta a cachaça no contra-rótulo.

Distribuição

Cinco mil litros de sua produção são destinados a “Santo Grau” que se mostrou uma importante parceira neste processo de valorização de engenhos históricos. Nando contou-nos dos desafios de trabalhar com uma empresa que se tornou multi-nacional e hoje por exemplo consegue distribuir a  Santo grau Séc. XVIII em todos os free-shops de aeroportos do Brasil. Para ele isto seria impensável sozinho. O que é interessante é que a Santo grau consegue ter um produto conceitual, agregando valor e reconhecendo um lado cruscial para o universo da cachaça: a cultura. É importante citar o trabalho da Santo Grau pois distribuir cachaça em um país como o nosso com tantas questões de infra-estrutura é uma missão e tanto. Bom ver que a melhor negociação é aquela em que todos saem ganhando.

Para os produtores fica o exemplo  de que ter um cliente fixo com capacidade de distribuição pode ser uma boa solução para evitar cachaça "encalhada" em barril.

Aproximadamente quarenta e cinco mil litros são engarrafados e distribuídos  por Nando como Cachaça Séc. XVIII na região e para todo o país, outra grande responsabilidade.


 



A degustação

“ Pimenta que não arde, cachorro que não morde, cachaça que não é forte não resolve”

A cachaça Séc. XVIII talvez seja o melhor exemplo de cachaça rústica que tanto tenho abordado neste blog. Aroma adocicado lembrando cana colhida na hora, com o frescor de um dia de chuva. Sente-se um frescor vivo no aroma. No paladar a confirmação do doce com um ligeiro metálico que pode ser confundido com um mineral. Servida no copo já demonstra seu tradicionalismo em um lindo rosário. Coisa fina, coisa da antiga. Chama atenção a persistência destas borbulhas e a viscosidade viva que possui. Isto principalmente na cachaça mais nova.
No alambique as mais novas que experimentamos  foram a safra do ano (2015) e a que batizei como da “semana” (agosto de 2016). Todas estas referências se tornam mais amenas nas cachaças com mais tempo, mas sem que sumam , estão lá mostrando o trabalho do tempo, aperfeiçoando uma matriz que já começa muito bem.

Nando serviu-nos uma safra de 2014  espetacularmente doce, segundo ele reflexo de um ano de safra com pouquíssimas chuvas. Retro-gosto de cana e fundo de copo de cana lembrando o doce.

Ressalta-se que é uma cachaça simples (possui muito corpo) e este é seu maior atributo pois enquanto cachaça branca traz todas as referências que se procuram na imagem inconsciente da cachaça branca (cheiro de bagaço de cana ou cana, milho, doce,  frutas, erval, capim, fermento...). Ótimo exemplo de cachaça com graduação alcoólica alta e controle de acidez 47 e 48° GL.  

Aos que querem se aproximar mais das branquinhas recomendo um experiência: degustar a Século XVIII nova (rótulo azul) comparando-a com o exemplar de mais de dois anos (rótulo vermelho)  e com a Santo Grau Coronel Xavier Chaves. Uma experiência que rende muito aprendizado sobre padronização, graduação alcoólica, acidez e certamente a estética da cachaça branca.

Fundo de copo (acabando a degustação)

Nestes dias em que percebemos a força do mercado e “...da grana que ergue e destrói coisas belas... ( Caetano Veloso)” dá orgulho beber uma cachaça que não está nem um pouco interessada em seguir a moda ou a tendência dos habituais 38°, 39° no máximo 42°GL de graduação alcoólica.  Lembro que as cachaças de Salinas tinham geralmente no mínimo 45°GL e o que vemos hoje é a expansão das graduações baixas, salvo exceções de produtores que seguem a mesma linha tradicional que Nando Chaves ( a Havana/ Anísio Santiago/ Havaninha possuem 48°) ou a nova "Bruta" da cachaça Mil Montes de Faria Lemos- MG.

O Engenho Boa Vista também traz o debate acerca de alambiques históricos. Até que ponto é necessário que mudem sua produção? Até que ponto precisam se adequar ou a legislação é que tem que contemplar a trajetória destes, criando exceções? Imaginemos o quanto alambiques como o do Sr Anísio Santiago (Havana- Salinas), que não é secular, tiveram que se adequar? Será que algum dia aquela destilação com "tromba de elefante" pode vir a ser proibida alegando-se outros padrões de produção e consumo?   Temos vários alambiques com mais de cem anos  em operação e esta característica é uma importante forma de valorizar a unidade produtora e colocá-la como testemunho da mudança das formas de fazer cachaça. É importante refletir sobre isto neste momento em que padrões têm sido estabelecidos.

  Rústica Mesmo!

Gostou do estilão forte da Séc XVIII? Aos que gostam das graduações alcoólicas mais elevadas em cachaças brancas (sou fã) fica uma relação para estudo que acredito básica de se ter em casa:

Rainha- Bananal PB (aguardente)
Aroeirinha- Porto Firme MG
Vitorina Branca – Fortuna de Minas
Cachaça Cachoeira de Cachaça – Vassouras- RJ
Mil Montes “Bruta”- Faria Lemos- MG
Corisco- Paraty- RJ

 Saideira


 Nando possui um compromisso com seus clientes, com a reputação de sua família e com o próprio tempo pois representa a história prática de fazeres que remetem ao Séc. XVIII. Lembro que quando o produtor abaixa sua graduação alcoólica ele possui um maior rendimento em termos financeiros e por isso o custo benefício da cachaça Séc. XVIII a incluiu em um produto de comércio justo. Possui um preço totalmente compatível com sua história e com o trabalho dos envolvidos. 
Nando chaves orgulha-se de gerenciar o engenho há 25 anos e diz:
“...Thiago, desde que me entendo por gente, não houve um ano que não se fizesse cachaça neste engenho..”.
 Para quem sabe o trabalho de produzir cachaça isto é um título para poucos. 
Como diz o texto de dona Cida Chaves: “....o tempo pede paciência e humildade. Poucos litros de cada vez para a qualidade acima de tudo. Isto faz a diferença...”
  O tempo não se engana mesmo!

Agradecimentos


Fica o primeiro agradecimento ao gaúcho Moraes, pessoa fundamental para que eu tivesse a  breve experiência de produzir a cachaça Tio Anastácio em Saquarema- RJ. Desde que me entendo amigo de Moraes que ele fala do "Nandinho". A paixão por cavalos e cachorros além de um grande amigo comum ( o agrônomo Rondon) aproximou estas duas pessoas. Foi assim que fui à Séc. XVIII conhecendo muito de Nando e praticamente com uma carta de apresentação de Moraes.


A sr Rubem Chaves e Dona Cida Chaves. O primeiro, paciente, quieto, de sorriso discreto e super acolhedor, a segunda uma pessoa encantadora talentosa com quem conversamos muito sobre política, história, feminismo, arte e  literatura. Tivemos a honra de ser agraciados por Dona Cida com alguns de seus livros. Dona Cida, esteja certa de que meus alunos se encantaram com  a Sossô.
Livros de autoria de Cida Chaves


A Jaqueline Luz, companheira que sempre registra as fotos e vídeos. Amante  e conhecedora destes interiores brasileiros;

A Nando Chaves  que nos recebeu super bem com sua "levitação sem meditação" (procurem saber) e que além de dar uma aula sobre cachaça é capaz de contar grandes causos e histórias, de sua vida e sua região. É o garoto propaganda que nos faz procurar a cachaça do Nando por mais que tenham eles sete gerações de história com cachaça.

A você que acompanhou estes relatos um abraço forte como uma Séc. XVIII.

  Dedico este último vídeo a Dona Cida Chaves a quem fiquei devendo uma prosa de viola. Esta é a sua cozinha Dona Cida antes do café!



4 comentários:

  1. Ao termino de seu relato é impossível não salivar por uma Séc. XVIII. Parabéns pela matéria; por nos mostrar um pedacinho desse nosso Brasil rural, rústico, de pessoas ricas, interessantes... Abraço.

    ResponderExcluir
  2. Valeu a visita companheiro. Que possamos reproduzir o espírito santo Séc XVIII degustando-a. Abraço forte como Cachaça.

    ResponderExcluir
  3. Consegui sentir até o cheiro da cachaça ao ler essa matéria. Sensacional!
    Eu também prefiro cachaças de teor alcoólico mais elevado, isso faz total diferença e agrega, principalmente, à persistência do retrogosto.

    ResponderExcluir
    Respostas
    1. Obrigado pela visita e pelo relato companheiro. Um abraço forte como uma séc.XVIII.

      Excluir