domingo, 29 de janeiro de 2012

Em sala com Turíbio

Festival Vale do Café de 2010. A Milonga de Jorge Cardoso sendo mostrada para o mestre Turíbio Santos. Agradeço a gentileza de Mauro Montezuma, produtor deste vídeo.

Abaíra ou Zabelê?




Estive no vilarejo conhecido como "Vale do Capão", distrito de Palmeiras-BA, do final do ano passado até o dia 12 deste mês.
Ao procurar por cachaças artesanais na região me deparei com dois nomes: Abaíra (na Chapada, atualmente, sinônimo de cachaça, como ocorreu em Paraty e Januária!) e Zabelê, esta última, nome de uma localidade da cidade de Ibiraquara, próxima uns cinquenta km do Vale do Capão.
Ao que sabemos a Abaíra é uma Cachaça produzida pela COOPAMA- "Cooperativa dos produtores de cana e seus derivados da microregião de Abaíra", mas que estandardiza e engarrafa cachaças de alambiques das cidades de Jussiape, Mucugê, Piatã e Abaíra.
A Cachaça artesanal que é bebida nos bares do Vale do Capão frequentemente é branca, armazenada em bambonas de plástico, sendo chamada ou de Abaíra ou Zabelê. Estas cachaças, no cômputo geral, são bastante "rústicas", com presença de colarinho extremamente persistente, forte cheiro da matéria prima e "sabor característico de cachaças fortes" (como referência comparativa para "sabor característico de cachaças fortes" utilizo: Corisco de Paraty, Vitorina de Fortuna de Minas, Século XVIII de Cel. Xavier Chaves e Rainha de Bananeiras... todas brancas).
A comunidade de Zabelê possui mais de dez engenhos de Cachaça, todos de alambique muito simples e realmente artesanais, que abastecem as cidades vizinhas e algumas mais distantes, inclusive algumas cidades da região sul da chapada, região na qual está Abaíra e as demais cidades da COOPAMA.
Não se percebeu na localidade do Vale do Capão, ou Ibiraquara nenhuma iniciativa de exploração turística da produção local de cachaça, ou mesmo iniciativa de organização dos produtores da comunidade de Zabelê na criação de uma cooperativa ou associação.
Das cachaças com selo do ministério da agricultura, nesta viagem, tive a oportunidade de beber a Abaíra (prata e ouro) e a Serra das almas (prata e ouro) da cidade de Rio de Contas. Saliento que o armazenamento da Serra das Almas "ouro" é feito em tonéis de "Garapeira" o que parece ser a mesma madeira utilizada pela Abaíra "ouro". A Serra das Almas branca, ganhou 1°lugar no ranking da revista Vip, degustação às cegas organizada pelo "Mapa da Cachaça" ( http://mapadacachaca.com.br/blog/vip-ranking-das-melhores-cachacas-brancas-2011/). Percebe-se nesta cachaça, outro “acabamento" quando comparada às demais em todos os três níveis de degustação (visual, olfativa e paladar).
Outro dado que chamou a atenção é o fato de NENHUMA das Cachaças da comunidade de Zabelê/Ibiraquara receberem nome! Não recebem nome nem de seus produtores, nem das fazendas onde são produzidas. São chamadas todas apenas de "Zabelê", o que mostra uma identificação despretensiosa e informal.
Cabe salientar ainda que foram visitados dois alambiques na localidade de Zabelê. O do Seu Benedito, e o do Seu Daniel, este último, ao que parece, o mais antigo produtor de cachaça da localidade de Zabelê.

Descobrindo Zabelê

Já tinha ouvido falar de Cachaça artesanal na Bahia. A primeira vez, quando estive no oeste do estado (em Correntina, já faz bastante tempo!) em uma feira comprei uma garrafa de Cachaça da Chapada. A segunda, quando estive no sul, próximo à costa do Dendê, onde apesar de encontrar a Engenho Bahia e Itagibá, sempre me diziam que Cachaça "destilada" (como se referem a cachaça de alambique), só para as bandas da Chapada Diamantina.
Uma vez na Chapada (Vale do Capão, distrito de Palmeiras) percebi que realmente por ali havia uma "história" com Cachaça, mas infelizmente, a possibilidade de conhecer a Abaíra, produzida pela Coopama, se tornava algo cada vez mais distante, literalmente, pois teria que enfrentar pelo menos uns trezentos km do Capão até Abaíra. Uma pena, pois o potencial etílico da viagem era muito grande.
No único dia que fiz um passeio com guia, fomos visitar um gruta no município de Ibiraquara e um pouco antes vi uma placa pintada a mão apontando para fora da rodovia escrito "ZABELÊ". Minha cabeça obcecada imaginou logo que se tratava do alambique da Zabelê, mas depois viria saber que aquela era uma placa de indicação da comunidade e não de um alambique específico. Mesmo assim teria que aguardar até o dia seguinte para conhecer a comunidade.
Negociei com Rafael (nosso guia) uma ida à comunidade com sua caminhonete e no dia seguinte estava eu inaugurando o "Roteiro dos Alambiques" da Chapada Diamantina. Pura brincadeira minha, mas que gostaria que fosse verdade, pois a possibilidade de explorar turisticamente este lado da Chapada é grande, mas muito distante da atual realidade.
No caminho falei um pouco da história da Cachaça para Rafael e sua esposa, Isis, ambos atentos às relações que fazia da cachaça com a história que aprendemos na escola, e atentos à Maria sua filhinha de nove meses, já nos acompanhando ao “Roteiro dos Alambiques”.
O primeiro alambique que visitamos foi o do Seu Benedito. Distante cinco km da rodovia. As instalações muito artesanais e uma realidade totalmente distante daquela das "novas tecnologias", "certificação", "fiscalização" que tanto ouvimos falar. Muito simpático, seu Benedito contou sua história de seis anos na produção de cachaça, como adquiriu os equipamentos e como têm feito para vender sua produção. Ele não se dedica exclusivamente à produção de cachaça, trabalha na construção civil e aproveitou que teve um tempinho sobrando, para não deixar o resto de cana plantada estragar e alambicar neste janeiro de 2012. Interessante citar que seu Benedito conta que aprendeu a produzir cachaça ao adquirir os equipamentos em Abaíra e ao visitar alambiques no interior de São Paulo. Perguntamos à ele sobre outros alambiques na região ao que ele nos diz: "Aí para dentro tem mais de dez alambiques". Fiquei surpreso e ainda mais curioso. Depois de apresentar o processo de produção para Rafael e Isis, pergunto qual alambique seria dos mais velhos da região, ao que ele responde de pronto: "O do Seu Daniel! Fica bem próximo, ótima pessoa, já foi até vereador aqui, ajuda muito a comunidade".
Quando chegamos, o Seu Benedito estava no término de uma destilação, já tirando a “água fraca”. Mesmo assim pudemos sentir o doce cheiro proveniente do alambique de cobre. Combinamos de voltar dentro de uma hora e meia para presenciarmos a próxima alambicada, na tentativa de pegar a “Cabeça” da próxima ( sem dúvida a mais nociva e “cheirosa” parte durante a destilação e o “coração”. Assim combinado, partimos para Seu Daniel.


Fermentação do alambique de Seu Benedito


Eu e o simpático Seu Benedito

Descobrindo Zabelê: Seu Daniel

Depois de dez minutos, partindo do alambique do Seu Benedito, chegamos ao que seria o alambique do Seu Daniel. Propriedade sem cerca, sem grade, sem cachorro, apenas um grupo consertando uma Chevrolet dessas bem antigas. Apresentamos-nos contando o motivo da viagem. Posso estar enganado, mas ao que me pareceu, não são muitas as pessoas que os visitam procurando a Cachaça.
Quem nos apresentou o alambique foi o filho do Seu Daniel, que infelizmente não recordarei o nome, mas que foi bastante esclarecedor e atencioso em mostrar todos os equipamentos. Naquele momento estavam com um caldo sendo fermentado para ser destilado dentro de um dia. Tinham parado por conta das festas de final de ano e agora, timidamente, voltavam a alambicar o resto de cana que ainda tinham.


Alambique do Seu Daniel


Moenda a diesel – alambique do Seu Daniel



Eu e o filho de Seu Daniel


A propriedade, maior que a do Seu Benedito, era toda de “Chão Batido”, inclusive dentro dos espaços do engenho. A moenda movida a Diesel era limpa apesar de muito rústica (polia de raspa de pneu), assim como as demais dependências. As colunas de cobre, todas limpas, tanto por dentro como por fora, da mesma maneira que as panelas.
O armazenamento em tonéis plásticos de duzentos litros, que disseram-nos ter adquirido em Abaíra, com a indicação de “hecho em Argentina”, muito provavelmente já utilizados para transporte de azeitonas e outros tipos de conserva. Naquele momento, o filho do Seu Daniel me mostrou cerca de uns vinte tonéis deste, todos cheios, pois segundo ele o ano de 2011 não tinha sido bom para a venda da Cachaça.



Um dos dois destiladores do Seu Daniel

Observei que tanto no Seu Benedito quanto no Seu Daniel, os equipamentos não possuíam termômetro, perguntei: “como alambicam?”. Resposta: “No olho! Quando começam a sair as bolinhas sabemos que estamos chegando à cachaça boa”. Depois de parabenizar o filho do Seu Daniel pela habilidade para este tipo de feito peço que separe um litro de cachaça para eu levar. Ele enche uma garrafa pet (2 litros), e quando pergunto quanto é, ele diz: “É presente”. Da mesma maneira como fez Seu Benedito.


Armazenamento

Já nos finalmente do encontro, assim acreditava, começo a me despedir agradecendo a recepção, quando ao passar pela porta da casa (a sede) vejo um Seu de chapéu, alinhado nos seus trajes de Sertanejo e escuto: “Este é o Seu Daniel”. Apresentei-me para ele de pronto e ele na mesma hora convida: “Sente aí para tomar uma café”. Preocupado com o avançar das horas e com a promessa de voltar a Seu Benedito, e quente ainda das doses que tomei respondo: “Olha, não queremos abusar por conta das horas, por mim fico, mas estou com companhia, se eles toparem...”. Então Seu Daniel diz: “Olha moço, aqui por estas bandas não se recusa um café”. Sem graça com meu comportamento de “matuto da cidade grande”, aceito.
Ir procurar Cachaça e escutar de um senhor que pareceu ter mais que o dobro da minha idade que eu não poderia negar um café, me fez respeitar ainda mais este outro produto: o café! Lembrei do confrade Yansel com sua paixão por café. Quando fui à Chapada, não sabia da relação desta com o café (nem com o mel, premiado já algumas vezes como o “melhor do Brasil”). Eu como tantos outros brasileiros, não sabemos de muita coisa sobre nosso país, sobre nossos sabores, sobre o valor desta gente do interior. É difícil valorizar algo que não se conhece, no máximo se respeita e isto nem sempre é feito, infelizmente. Cachaça e Café guardam historicamente características e semelhanças, principalmente no interior, onde o prato é fundo, o café é do quintal e a cachaça do alambique, geralmente orgulho de quem os produziu, como parte do “melhor que temos para oferecer por aqui”.

O que acompanha o café é um bate-papo, pretensa entrevista, que mostra muito da história de um homem que faz cachaça. Seu Daniel não alambica mais, quem o faz é seu filho, que aprendera com ele, mas continua produzindo. Aprendera não só a alambicar, mas a confeccionar os destiladores, de forma totalmente artesanal, na mão, martelando, dobrando a chapa, que segundo ele “é cara e vem de São Paulo”.
Seu Daniel nos conta que por aquela região montou vários equipamentos, naquele momento vi naquele homem, se não o maior, um dos maiores, responsáveis pela cachaça da comunidade de Zabelê. Contou-nos também de sua experiência com a rapadura, e posteriormente, sua opção pela produção de cachaça.
Deu prazer ouvir da boca de Seu Daniel conhecimentos que hoje a ciência reconhece, como por exemplo: a não aceitação por parte dos consumidores da cachaça feita com equipamento de “aço inox”, ou mesmo a preferência pelo produto proveniente dos destiladores “capacete” (conhecidos como “Tromba de elefante” ou “Capelo” em outras regiões do país). Ao Seu Daniel, todo o meu respeito, e admiração, por ser ele um destes personagens que construíram a história da cachaça em sua comunidade, como tantos outros “Seu Daniel”, que hoje ainda vivem anônimos no avançar da sua idade, espalhados pelo Brasil.


Seu Daniel


Eu e Seu Daniel

Meus sinceros agradecimentos: às forças desconhecidas que me permitiram chegar a estes alambiques, independente da dificuldade de acesso; ao Rafael por ter topado a empreitada, dirigindo, fotografando e filmando; à Isis e Maria pela companhia e descontração; à Jaqueline pelo apoio, filmagem e orientação para uma “boa entrevista”, que ainda está por vir...rs..rs; e a Seu Benedito, Seu Daniel e sua família.


Rafael, Seu Daniel, filho, eu, Maria e Ísis





Glossário:
Travo: Sensação tátil, adstringente, percebida principalmente na superfície da língua durante a degustação.
Aljofre: Também conhecido como “Rosário” ou “Colar”. Trata-se do conjunto de pequenas borbulhas que adornam a superfície do destilado, tido pelos mais antigos, como sinônimo de cachaça pura, sem mistura ou diluição, viscosa, oleosa.