terça-feira, 4 de agosto de 2015

"Tropeando" no Vale do Paraíba/Café

A divisão cultural segue outras lógicas quando comparamos com a divisão política dos territórios. O vale de um rio, uma chapada, um delta, são culturalmente mais abrangentes e fazem com que não sejamos capazes de delimitar onde começa ou termina um evento folclórico/cultural. Assim é com os sotaques, hábitos, brincadeiras de infância...
O vale do rio Paraíba do Sul contempla municípios e distritos distribuídos pelos estados de Minas Gerais, Rio de Janeiro e São Paulo. Se não bastasse o vale deste rio, temos ainda a Serra da Bocaina (São Paulo e Rio) e a Serra da Mantiqueira como elementos aglutinadores de uma cultura que ora é caipira/caiçara ora tropeira, ora uma mistura disto tudo. Temos as referências “menores” como leitos de afluentes e rios vicinais (Piabanha, Parapeúna, Rio Preto, Rio das Flores) ou a Serra Negra e a Serra do Funil.
  Esta apresentação toda é para defender a cultura tropeira, caipira/caiçara presente também no estado do Rio de Janeiro, mas que como outras culturas presentes no interior do estado perdeu o foco para manifestações atreladas à metrópole do Rio de Janeiro, que já foi capital do Estado do Brasil (1621-1815), colônia do Império português (1763 a 1815), capital da república dos estados unidos do Brasil de 1889 a 1960 quando da criação de Brasília. Guardadas as devidas proporções, é como se as comitivas, tropeadas/ muladas fossem as empresas de logística que distribuíam os diversos do interior. Chamo atenção o fato destes serem ainda ativos e especialmente aqui no estado do Rio de Janeiro estarem por exemplo responsáveis pela distribuição de boa parte do "Parmezão da Mantiqueira" que se come em Maromba, Mauá, Maringá de Minas e Rio. Aos que tiverem maior interesse vale a pena dar um confere neste vídeo https://www.youtube.com/watch?v=83H-EFspvzY 
Armazém Em Mont Serrart

  Seguindo caminho, aqui vai um resumo de uma viagem etílica que é dividida em duas partes. Rio x Juiz de Fora (MG), e em um outro momento Juiz de Fora x Rio das Flores, Valença x Rio Preto (MG)x Serra do Funil (MG).
Como estas localidades  estão muito próximas entre si é difícil delimitar onde termina o Rio de Janeiro e onde começa Minas, principalmente quando se passa por distritos como: Montserrart, Afonso Arinos, Manuel Duarte (todos distritos entre Levi Gasparian e Rio das Flores inseridos em antigas rotas da Estrada Real).
  
Rio x Juiz de fora/  Tradição Mineira

Em 13 de junho acompanhei a Confraria de Cachaça Copo Furado ao alambique da Tradição Mineira. Foi um ótimo reencontro com a Marlene (proprietária, alambiqueira) que falou um pouco sobre cooperativismo  e o desafio que é a organização das cachaças de Juiz de Fora e Zona da Mata mineira em torno de uma cooperativa.

Tonéis de Castanheira da Tradição Mineira
Além de nos apresentar as instalações e falar de sua rotina quando do período de destilação, Marlene e Bené (o esposo) conduziram a degustação de seus produtos. Saí do alambique com a confirmação do que suspeitava. A cachaça Tradição Mineira armazenada em tonéis de castanheira é simplesmente muito acima da média.  Este exemplar atesta que a castanheira é madeira que dia após dia conquista mais público a partir de alambiques como Flor do Vale- RS, Lira-PI, Sudoeste- PR. Mesmo com a prata e o carvalho sendo muito bons, a castanheira destoa positivamente por conferir autenticidade à linha de produtos deste alambique. Super recomendável! A outra confirmação que tive é de que o casal Bené e Marlene são pessoas simples e acolhedoras que sabem como ninguém unir a descontração (comum entre os cariocas) com a discrição (típicas dos mineiros) e que talvez aí tenhamos um pouco do que é a relação destas cidades tão próximas e afins (Rio/Juiz de Fora).







A Werneck



 Em 22 de julho segui, acompanhado do amigo e sócio Moraes, a rota da BR 040 com o objetivo de conhecer os alambiques das cachaças Werneck (Rio das Flores) e Santa Rosa (Valença) com destino final no Vale do Funil, vilarejo de Rio Preto- MG.  A escolha da Werneck foi por dois motivos: primeiro o fato de saber previamente que o projeto do alambique une-se ao da casa, tendo uma casa alambique ou alambique casa, únicos. O segundo motivo o posicionamento da Werneck como uma das melhores cachaças do Brasil apesar do pouco tempo de existência       (quase dez anos).
Do primeiro contato a concretização da visita, o proprietário Eli Werneck foi uma gentileza só. Elaborou a rota mais segura com todas as curvas e porteiras como ícones permitindo nossa chegada rápida e tranquila.
Organização padrão Werneck
O lugar é calmo como um lar deve ser e alguns detalhes demostram o carinho e cuidado do casal Werneck com tudo que os rodeia. Da “Brisa” na porta da casa (uma cadela Labrador) às pantufas que pede que calcemos para andar no alambique, nota-se zelo com o que se faz. A moagem fica bem distante da fermentação e o caldo chega às dornas através de canos que percorrem um trajeto razoável. Fermento selecionado, destiladores  Santa Efigênia, planilhas de relatório para cada destilação e muitas bombas elétricas  de transporte do destilado para diferentes momentos da produção(padronização, engarrafamento). Isso é só um pouco dos equipamentos que vemos. Chamo atenção ao cuidado que o Werneck possui com a água que utiliza para a padronização de seu produto. Filtros de todos os tipos (carvão ativado, resina Cátion/íon, deionizador de água e filtro por raios ultra-violeta). O padrão “Nasa” não é à toa já que a Werneck têm sido exportada para os Estados Unidos.
 Para quem pensa que não há stress,  Eli Werneck deixa claro como alguns procedimentos de regulamentação da cachaça  se mostram morosos e burocráticos como licenças e autorizações. Sobrou até para o selo do IPI que segundo ele seria bem mais prático se  fosse destacável e auto-colante e para os fornecedores de embalagens que tiram garrafas de catálogo sem considerar quantos produtores já possuem sua imagem atribuída à um modelo de garrafa.  Fica a sugestão de quem é produtor, alambiqueiro, vendedor, distribuidor...Eli Werneck joga nas onze posições com habilidade.
 Depois de degustar a branca (inox), o Jequitibá (minha predileta), o carvalho  e a Safira Régia conversamos sobre as novidades da Werneck. Vale o confere no vídeo onde no final ainda fico sabendo das visitas ilustres no campo da música ao alambique Werneck.
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A Santa Rosa



  A Santa Rosa é uma cachaça que junto da Chacrinha conta a história do município de Valença. Bem perto de Rio das Flores, foi muito fácil chegar no alambique embora não tivéssemos certeza se de fato conseguiríamos conhecer as instalações já que os contatos  do início da semana não conseguiam ser confirmados. Fomos atendidos por Fabiana que teve que dividir sua atenção com uma visita de família.  Aliás o clima familiar pôde ser percebido pelas crianças brincando na porta da propriedade e pela reunião de pessoas em torno de uma mesa que entendi ser a cozinha da família. Não conseguimos ter maiores informações da fazenda e neste sentido Fabiana se desculpou dizendo que não têm aberto para visitações pois estão trabalhando na restauração de algumas instalações da propriedade.
Tinham alambicado no dia anterior e o cheiro doce do fermento podia ser percebido fora da sala de fermentação. A roda d’agua junto a muita cana denunciava o tamanho do alambique. Trata-se de um alambique muito antigo e grande.
 As dornas de fermentação ativas e de aço inox com um fermento caipira à base de fubá, bem vigoroso. O destilador chama atenção por ser de cobre com uma panela que parece ou de inox ou de cobre estanhado. Um formato bem peculiar se compararmos com o que temos visto ultimamente. A serpentina, de aço inox. A adega, muito grande dividida ente tonéis de jequitibá e barris de carvalho de diferentes aparências e procedências (francês, escocês, americano). Um funcionário muito tímido, responsável pela moagem,  acompanhou nossa investida em meio aos barris e mesmo assim não conseguimos achar as imburanas. Mais algumas fotos, mas a impressão de que aquela visita poderia ser mais pessoal. Gostaria de ter conversado mais com os produtores/proprietários, e posso não ter dado sorte.
Exemplares do escritório da SR. A história nos rótulos
 É bom lembrar que a Santa Rosa é uma jóia, orgulho para a cidade. Tenho alguns exemplares guardados pois esta cachaça teve muita alteração de sabor de uns dez anos pra cá. Lembro ainda hoje quando o confrade Gilvan Chegure apresentou-a certa feita como sua cachaça de cabeceira(direto do túnel do tempo!). Na oportunidade a degustação feita em copo de Uísque, trazia ao olfato um cheiro de cana frutado e ao mesmo tempo amendoado muito agradável e sutil. Virei fã e com isso fui percebendo a mudança do produto, que para mim tem, em uma versão de 1litro com a apresentação  em garrafa “Cachaça do Brasil” com tampa verde, uma das melhores versões.
Infelizmente da linha de seis diferentes cachaças (Essence, Intense, Special, Splendid, Royal, Exclusive) só degustamos a Essence que adquiri. Ótima cachaça a preço honesto.
Daí, rumamos para Rio Preto-MG.

 No caminho de Valença a Rio Preto passamos por Pentagna e Parapeúna. Passamos na porta da fazenda Bela Vista onde o querido Rogério Ramos recebeu-me já por duas vezes. Muito bom ver a mesma plaquinha da fazenda. No centro de Parapeúna adquiri duas garrafas que o Rogério deixara ainda naquele dia.

A cachaça Tiririca

  Chegamos à comunidade do Funil à noite. O  acesso ao local é sinalizado por placas de pousadas que ao mesmo tempo vão indicando a  distância. A subida em estrada de barro requer tranquilidade e um carro alto. O “Land Roça” (minha Paraty 94) subiu numa boa salvo a zoada da correia do alternador que sempre chia com muita poeira. Neste dia eu e Moraes só queríamos comer e dormir, e foi isso que fizemos.
O dia seguinte (uma sexta) fora reservado para o descanço. Queria conhecer as belezas da Serra do Funil de que já tinha ouvido falar. Rio Preto é dividido de Lima Duarte e Ibitipoca por uma serra, ou seja conhecemos o outro lado de Ibitipoca. E que lado! As opções de cachoeiras são várias e em solidariedade ao joelho de Moraes resolvemos trocar a visita à cachoeira vermelha pela visita ao alambique do Sr José Roque, também conhecido como José do Sítio Tiririca. Fabrício, funcionário da pousada onde estávamos hospedados ao nos ver tocar sanfona e violão nos disse: “...vocês precisam conhecer meu sogro...”. Oito Km de carro em uma estrada tranquila que lembra muito os acessos de Lima Duarte à Ibitipoca.

  O Sr josé Roque é um raro exemplar de pessoa que montou o alambique de curioso e engenhoso que é. Produz hortaliças,mel, queijo, milho, cana, cachaça e fubá. Um exemplo . O milho e o fubá são processados em engenhos movidos à roda d’agua. O mesmo mecanismo que gira a moenda de cana, gira a mó de fubá. Conversei muito com Sr josé Roque sobre o alambique que ele foi me mostrando meticulosamente. Trocamos receita de fermento e percebi prontamente que Sr Tiririca fermenta sem utilizar sacarímetro e destila sem termômetro na panela, algo cada vez mais raro e que cobra mais atenção e habilidade do alambiqueiro. Contara que ele mesmo tinha diminuído o tamanho da panela do destilador para que pudesse fazer um produto com mais controle e maior qualidade. Ele mesmo fizera o forno e adaptara a serpentina.
Alambique montado por Sr Tiririca 
Sua cachaça impressiona pelo cheiro doce que ora lembra milho, ora cana e mesmo a branca é curiosamente muito suave.
Mó ou moinho de Fubá movido a água

 Depois de trocar muitas informações na cachaça, fomos trocar na música. Sr José Roque possui uma oitenta baixos (acordeom) e já foi responsável por "segurar" a sanfona de algumas folias de reis da serra do funil um baile facilmente. Tive ali uma manhã memorável. Água em fartura , queijo fresco, boa prosa e a vontade de voltar para conhecer tudo o que não conheci da serra do funil. Percebi que  o gosto de conhecer cachaças acompanha o gosto por conhecer as pessoas que fazem  a cachaça. Suas histórias e suas trajetórias. 
Identificação com Sr Tiririca: Cachaça e Música
Agradeço à toda a comunidade do Vale do Funil, em especial Cristiano da Pousada Mirante Santo Antônio. Ao amigo Moraes, gaudério inconfundívele ótima companhia de viagem e violão.
 Dedico este poema à todos os produtores de cachaça em especial à Eli Werneck, e Sr José Roque que me mostraram que nos extremos de dois alambiques totalmente diferentes se encontra algo em comum: o amor pela terra, a paixão por ver a mesma produzir e o carinho pela cachaça. Muito obrigado mestres.

“Fazemos cachaça quase que por vício
Dinheiro que é bom é coisa difícil,
Riqueza maior são os amigos.
Mas se a fé é um firme artifício,
Continuamos  acreditando
Mesmo com o tempo passando
Como se hoje fora só o início”

  Thiago Pires