quarta-feira, 20 de novembro de 2013

"Zumbi, mandai alforria, pro meu coração"

 Por Thiago Pires
Não teria como deixar passar o dia da consciência negra. Na música e na Cachaça aí está a comunidade negra. Ontem, hoje e na história.Se é para ter consciência, seguem três músicas que acredito demarcarem diferentes momentos da história do negro no Brasil. "Sinhá" de Chico Buarque e João Bosco trazem muita coisa pra refletir nesta apaixonante canção. 
"Morro Velho" de Milton Nascimento traz a realidade rural passada e ainda muito comum. Destaque para o sempre iluminado Rolandro Bondrin. Cabe escutá-la com muito carinho como tudo que é do Milton. 
"Respeitem meus Cabelos Brancos" de Chico César é a afirmação e um pedido de respeito. Consciência se adquire.
  "Zumbi comandante guerreiro, ogunhê. Ferreiro mor capitão da capitania da minha cabeça, mandai alforria p'ro meu coração".(A Felicidade Gguerreira Gilberto Gil)






domingo, 17 de novembro de 2013

Estética da Cachaça/ Paraty

A última postagem trouxe alguns apontamentos meus sobre a estética da cachaça. Muito bom perceber o retorno das pessoas e uma delas foi o Gilson Koatz, que conheci através da postagem.
O Gilson pediu para que eu explicasse melhor o meu conceito de cachaça rústica e por que esta estética não seria completamente aplicada à Cachaça Engenho D'ouro de Paraty aqui do estado do Rio de Janeiro. Acreditando que tanto as perguntas dele são pertinentes  e as respostas podem ser esclarecedoras para outros, publico aqui  trechos de minha conversa com o Gilson.
Acredito ser importante compartilhar depoimentos como este que o Gilson faz sobre sua relação com a Engenho D'ouro. Muito rico o que cada vez mais tenho chamado de "relação afetiva" da cachaça.
Ao Gilson ficam os convites para degustar "aquela de banana" , visitar uma reunião da confraria de Cachaça Copo Furado e um abraço forte como Cachaça.

Gilson
Olá, Thiago,

O que me motivou a escrever foi a sua opinião sobre a cachaça Engenho D'Ouro de Paraty. É que você não explicou o por quê ela se afastou do seu conceito, que me parece ser o de rusticidade. Como conheço as cachaças produzidas naquele município, gostaria de ter esse seu esclarecimento.
De resto, parabéns pela matéria.

Thiago Pires

Vamos lá
Durante muito tempo (década de 90 e início da atual) as representantes de Paraty foram Corisco, Coqueiro e Vamos Nessa (Também da família Mello e atualmente extinta). Durante este período a forma de produção não necessariamente era influenciada por valores de mercado que aponto no próprio texto. Lembro também que até os equipamentos de destilação eram diferentes, geralmente feitos em campinas- SP. Este modelo de destilador pode ser conferido ainda na Corisco e na Maré Cheia (morro do jacu). Aquecimento a fogo direto com resfriamento em capelo e serpentina.
Atualmente temos alguns alambiques mais recentes, que são de pessoas que possuem muita experiência com cachaça (alguns experiência de família inclusive) mas que já utilizam outros valores e outros equipamentos. É assim que a Pedra Branca tem um modelo de alambique que já demostra um pouco deste avanço. A Engenho D'ouro também possuía um equipamento de fogo direto e modificou sua estrutura completamente (por exemplo utilizam caldeira). 
A primeira vez que fui na Engenho D'ouro (2003) as dornas de fermentação eram tanques de alvenaria azulejados, bem diferente do que vemos hoje. Acredito que estas melhorias podem ser percebidas na mudança do produto inclusive. Se pensarmos na Maria Isabel então, esta possui uma estética bem diferente, tanto que não possui branca (inox) possui jequitibá, diferente da maioria de Paraty que sempre utilizou o amendoim para armazenamento.
Acredito que a estética da Engenho D'ouro se afasta um pouco das demais e vejo isto inclusive como algo positivo. Na minha avaliação ela possui um refinamento de olfato que as clássicas Coqueiro e Corisco não possuem. Por isso que digo que ela pode se afastar um pouco da estética "rústica".
 Uma sugestão de estudo é fazer uma degustação de cachaças que acredito muito diferentes, exemplo:

Coqueiro x Mulatinha
Corisco x Pedra Branca
Maré Cheia X Maria Isabel
Engenho D'ouro X Maria Isabel
Engenho D'ouro x Corisco
Engenho D'ouro x Coqueiro

Se puder fazer esta experiência com as cachaças brancas (inox) o faça. É muito prazeroso ver as nuances de cada uma. Lembro que Coqueiro e Corisco são descansadas no Amendoim. A Mulatinha acredito que seja inox. A Engenho D'ouro tem inox e Jequitibá,a Maré Cheia é Amendoim também. Atenção às madeiras e ausência delas.
Respondendo á outra pergunta:
Fico à disposição para possíveis esclarecimentos e discordâncias já que é possível de você ter outra análise, o que é bastante normal.
Abraço forte como cachaça!

Gilson
Nov 12 em 11:08 AM
Thiago,

agradeço de antemão a resposta, que me deu grande prazer porque conheço bem a família do Norival e da Marlene, e me considero meio parente de tanto que frequentei aquela casa. 

Nunca fiz essa degustação que você propõe e sempre preferi cachaça branca às que descansam em madeira. O que o tonel acrescenta em cor e sabor me fazem sentir um certo afastamento do conceito de cachaça.

As minhas caninhas preferidas em Paraty sempre foram a Corisco, anterior à Engenho D'Ouro, e conheci os dois alambiques. O primeiro desde 1992, enquanto que a Engenho vi praticamente nascer.

Acho que virou ponto turístico não só pela cachaça, mas pelo engenho de farinha, o único que conheço movido exclusivamente pela queda d' água e pelo movimento das polias, que vi muitas vezes serem trocadas pelo seu Francisco e também pelo Norival. Além dos pastéis da Marlene. Você certamente conhece o filme que fizeram lá no Engenho, quando o "tio" ainda era vivo.


Um abraço e até, quem sabe, um encontro para degustação.

Ah, se quiser provar, acho que sou um dos raros que ainda tem uma pequena garrafa de cachaça de banana que o Norival fez experimentalmente há alguns anos.

terça-feira, 5 de novembro de 2013

Estética da Cachaça: uma discussão cada vez mais pertinente

 

O seguinte texto foi "encomendado" pelo amigo e confrade Gilvan Chegure para o informativo "Pinga nos i" da Confraria de Cachaça Copo Furado. Este jornal se mostra um ótimo almanaque de informações sobre o universo da cachaça e com toda modéstia, é feito por pessoas que estudam e amam esta bebida. Como nem todos têm acesso ao informativo segue o texto muito importante para a reflexão à respeito das mudanças pelas quais têm passado a cachaça. Vamos lá!

Por Thiago Pires 
Temos observado com bons olhos o momento pelo qual passa nossa bebida. Cada vez mais sendo apreciada e reconhecida pelo seu sabor, valor e história. Em cada canto surgem novos conhecedores, apreciadores e produtores tendo algo novo, ou não tão novo em alguns casos, para falar sobre nosso destilado.
 Uma discussão que não era possível há vinte anos, e que é cada vez mais pertinente, é sobre a estética da cachaça. Ainda há muita confusão por parte do público apreciador de cachaça e muito desta confusão está relacionada à falta de conhecimento de todas as etapas do processo de destilação. Outro motivo é a falta do que chamo de “repertório”, que são referências para comparação e estabelecimento de conceitos.
Tenho percebido que os processos de melhoria da qualidade da cachaça têm disseminado valores de mercado que são importantíssimos. O selo do ministério da agricultura e em alguns casos de uma certificadora, a apresentação em belas garrafas com rótulos bonitos e com as informações básicas (procedência, graduação alcoólica, forma de armazenamento, etc.) proporcionam mais confiabilidade ao consumidor.
Se por um lado os valores de industrialização e mercado (padronização, controle de qualidade, rastreabilidade, distribuição, etc.) possibilitam demarcar uma nova era do produto, por outro lado tem proporcionado a planificação de parte de algumas etapas do processo de produção e mesmo do produto final. Mas o que quero dizer com isso?
Observo que algumas cachaças com graduação alcoólica de pelo menos 45°Gl têm abaixado drasticamente sua graduação chegando a adquirir 40° e até 39° Gl. Isto tem ocorrido em locais em que historicamente a cachaça possuía graduações com mais de 45°Gl.   Lembro que por legislação a graduação das aguardentes de cana para serem consideradas cachaça é dos 38° aos 48° Gl.
Conversando com alambiqueiros de diferentes lugares percebemos, sobretudo com os mais velhos, que a margem de corte das cachaças era feita habitualmente com uma graduação alcoólica maior que a atual. Primeiro, por utilizarem a escala Cartier como referência para a destilação geralmente em torno de 20° graus (o que corresponde a 50 graus Gay Lussac). Segundo, pelo fato da estética da cachaça ter sido bastante influenciada por características encontradas na primeira fração do destilado (cachaça de cabeça).
 É importante lembrar, do ponto de vista histórico, que a cachaça de cabeça foi bastante consumida no país e lamentavelmente em alguns lugares ainda é. Lendo o Dicionário Folclórico da cachaça, de Mário Souto Maior (Recife), percebemos as inúmeras vezes em que a cachaça de cabeça é citada. Como nordestino, o autor refere-se a este tipo de cachaça em receitas, batidas e mesmo consumida pura. Independente das questões químicas que fariam com que os mais prudentes não se aventurassem de cabeça nas “de cabeça”, vemos que esta fração do destilado possui algumas características facilmente perceptíveis e até desejáveis sensorialmente que influenciaram toda uma geração de bebedores, principalmente no interior.  O aroma é ativo e muito adocicado o que de alguma maneira pode seduzir em uma análise olfativa pouco criteriosa. Comumente possui colarinho (rosário) o que denuncia o nível de viscosidade deste líquido. Mesmo assim nunca é demais lembrar que a cachaça de cabeça é tecnicamente uma aguardente e é realmente muito prejudicial à saúde, não pela concentração de álcool apenas, mas pela quantidade de álcoois superiores e possíveis metais de arraste que pode conter sendo a primeira etapa da destilação.
 Encontramos no mercado cachaças com algumas características que remetem a esta estética que comumente me refiro como sendo a de cachaça “Rústica”.  Segue uma lista de algumas delas. Algumas mais conhecidas, outras menos, que valem por compartilharem da estética mais forte em acidez e graduação alcoólica a qual me refiro, onde o produtor preserva a referência da matéria prima  e quando utiliza madeira, o faz muito mais para diminuir a acidez do destilado do que para agregar sabor e aroma da madeira ao de cana já presente na matriz pura (prata). Entre as brancas temos:
ü  Séc XVIII- Coronel Xavier Chaves- MG;
ü  Vitorina- Fortuna de Minas-MG;
ü  Cachoeira de Cachaça- Vassouras- RJ;
ü  Embaia Saia- Joaquim Felício-MG;
ü  Aroeirinha- Porto firme (Viçosa)- MG;
ü  Nativa- Barra do Piraí- RJ;
ü  Corisco- Paraty- RJ;
ü  Maré Cheia- Paraty- RJ
ü  Engenho D’ouro- Paraty (já saindo um pouco da estética sugerida)
ü  Parapeúna Branca- Valença- RJ
ü  Rainha (que é uma aguardente). Bananeiras- PB
Lembro que as cachaças armazenadas que possuem esta estética, geralmente possuem seu descanso em madeiras neutras (é o caso de algumas de Paraty) ou ainda que seja em madeiras ativas, ficam repousadas por pouco tempo em dornas de grande volume e geralmente bastante antigas. Entre as armazenadas ou envelhecidas temos, no paladar e aroma:
ü  Claudionor- Januária-MG
ü  Velha Januária- Januária-MG
ü  Cristalina de Buenópolis ( se distanciando um pouco da estética sugerida)- Buenópolis-MG
ü  Aracy- São João Nepomuceno-MG
ü  JE produzida pela Fazenda da Conserva- Bemposta- Três Rios- RJ;
ü  Colombina- Alvinópolis- MG
É certo que outras cachaças poderiam ser incluídas, mas no geral os produtores têm tomado procedimentos de “acabamento” na cachaça, o que distancia o produto da estética abordada. Para alguns uma melhora, para outros não necessariamente. Alguns produtores lançam uma cachaça mais forte identificada como “para drink”, ou “safra do ano” e para que tenham maior aceitação, abaixam a graduação alcoólica.
 Lembro que a forma mais recorrente de padronização da graduação alcoólica é feita através da diluição da cachaça com água destilada, o que é tecnicamente permitido, e diminui a intensidade das informações de olfato e paladar (por diminuir o álcool). Os produtores têm feito isto pelos seguintes fatores:
a.       A padronização da graduação alcoólica é um daqueles valores de industrialização citados anteriormente;
b.      Há uma aceitação e consumo maior no mercado de cachaças com graduações mais baixas, principalmente pelo público que não é bebedor assíduo;
c.       Os processos de exportação possuem taxação sobre a quantidade de álcool do produto, o que faz com que os produtores interessados em atingir o mercado internacional façam a redução da graduação alcoólica;
d.      O produtor possui uma rentabilidade maior.
­­­­­Como apontei, não vejo com maus olhos as mudanças pelas quais tem passado a cachaça, mas acredito ser importante que os produtores tenham pelo menos uma vaga ideia do que desejam preservar em seu produto, do que pode melhorar e, portanto mudar, e do que deve ser preservado. Alguns já se atentaram para isto preservando as características de seu produto preocupados em atender o público consumidor local.
É muito comum bebermos uma cachaça regional vendida em garrafão que é muito diferente dos exemplares que chegam às metrópoles. Em alguns casos trata-se de uma cachaça de menor qualidade por estar muito distante do ponto de destilação considerado o coração, mas às vezes encontramos verdadeiras joias.

A graduação alcoólica faz parte da caracterização do produto. Em alguns casos possui uma relação com o local onde é feito e com o público regional que prestigiou e prestigia aquela cachaça. Dessa forma, se não prejudica a saúde do consumidor, o gosto do mesmo, e está nos padrões laboratoriais estabelecidos, pode ser entendida como algo a ser preservado. Afinal de contas o “Rústico” têm seu valor, que na maioria das vezes confere algo cada vez mais raro: a autenticidade!

Luiz carlos e a Sabinosa

Atendendo ao pedido do mestre Luiz Carlos anexo esta foto. Lembro que o blog é um espaço aberto apesar de moderado por mim (ThiagoPires.) Fiquem á vontade para encaminhar imagens e como sei que a plataforma do blog é diferente (para não falar complicada), podem encaminhar para o email que faço a postagem. Aguardamos maiores informações sobre a foto.
 Luiz Carlos, abraço forte como Cachaça!

domingo, 11 de agosto de 2013

Outros Tambores (Candombe Mineiro)

Os Tambus
Os que leram a última postagem puderam conferir o tambor de crioula do Maranhão além da devoção de mestre Amaral à São Benedito.
Descendo do Maranhão para Minas Gerais chegamos ao município de Lagoa Santa a pouco mais de setenta quilômetros de Belo Horizonte, onde fica a Serra do Cipó muito conhecida pela beleza de suas cachoeiras e por uma atração folclórica que movimenta o mês de setembro: A festa do Candombe.

O Candombe é uma manifestação folclórica típica da Serra do Cipó em Minas Gerais, não tendo, à princípio, relação com o Candombe uruguaio, apesar da origem africana. Assim como o Jongo ou “Caxambu” (presente nos demais estados da região sudeste) possui semelhanças que sugerem sua origem a partir do mesmo grupo africano Bantu. Além desta característica podemos citar outras semelhanças com o jongo:

a)     Ambos relacionam poesia, dança e canto com tambores esculpidos em troncos de árvores , os quais comumente são afinados à fogo (à exemplo do tambor de crioula);
b)    As metáforas presentes nos versos ficam próximas das adivinhas, formas muito presentes na África Bantu;
c)     A apresentação dos versos pelos cantores pode sugerir teor de desafio, onde um fica com a tarefa de decifrar o verso do outro;
d)    Os eventos onde acontecem estas manifestações geralmente são cerimônias que envolvem a comunidade e possuem alguma relação com o mundo espiritual;
e)     Estas cerimônias se iniciam com a saudação aos tambores, que são considerados sagrados e saudação aos antepassados e entidades do mundo espiritual; com oferta de cachaça à estas;
f)     A referência aos “Carreiros”, boiadeiros que lidam com bois de cangalha ou de carro-de-boi presentes nas letras e rimas dos versos.

Observa-se que algumas destas semelhanças não se restringem apenas ao Candombe e Jongo, indo ser encontradas como já explanado, também no tambor de crioula.
    Encontramos no trabalho acadêmico do etnomusicólogo Paulo Dias algumas justificativas históricas para as semelhanças:

“O catolicismo negro-confrarial, presente já no século XV em Portugal, firmou-se no Brasil Colônia como única porta de entrada para escravizados e libertos negros se inserirem estrategicamente numa sociedade dominada pelos brancos, notadamente por ocasião das festividades públicas oficiais e religiosas, onde desde o século XVII são relatados os cortejos dançantes de negros, as congadas, tratadas pelos cronistas da colônia como “diversão honesta”. No interior de instituições importadas da Europa, as Irmandades Leigas, africanos e seus descendentes desenvolvem uma forma de catolicismo que se constitui em sistema religioso incorporando à devoção aos santos católicos – Nossa Senhora do Rosário, São Benedito, Santa Ifigênia – elementos do culto bantu-africano aos ancestrais, manifestado seja na presença dos Reis Congos, casal de representantes das linhagens reais africanas rearticuladas simbolicamente em terras da diáspora, seja na invocação de ancestrais escravizados – os pretos velhos, e divindades bantu como Calunga e Zâmbi.
O Candombe é reconhecido pelos membros das irmandades de Nossa Senhora do Rosário de Minas como sua manifestação cultural mais antiga, germinal, depositária dos mistérios do sagrado, e a manutenção de seus traços originais torna-se ponto de honra nessas comunidades.” (trecho do artigo publicado no livro Culturas e diásporas africanas- organização Cláudia Regina Lahni et al.Juiz de Fora:Editora UFJF, 2009)


Café na cozinha da Dona Mercês
Estive no município de Lagoa Santa - MG em setembro de 2012 fazendo um trabalho de pesquisa junto  a outros integrantes da “Orquestra Revelia” após um primeiro semestre comprometido com a gravação do álbum "Músicas para Saudar Jorge Amado". Nossa missão era conhecer e registrar “in loco” a  música do Candombe. Procurando música encontramos muito mais.

É importante lembrar que esta manifestação ocorre em alguns lugares da Serra do Cipó e estivemos na Comunidade do Açude que é uma comunidade quilombola. Fomos muito bem recebidos na pessoa de Dona Mercês e suas filhas que atualmente são quem  “gerem” o evento. Acampamos em seu terreno que costuma receber muitos visitantes, pessoas interessadas em conhecer o candombe e que estavam ali pela primeira vez ou simplesmente voltavam para rever os amigos do Açude. Na oportunidade os tambores (ou “Tambus” como são conhecidos) completavam simplesmente duzentos anos segundo os moradores do Açude.
Encontramos uma comunidade muito bem organizada com laços familiares fortes onde as mulheres desempenham papel de liderança. Outro elemento que chama muita atenção: as crianças da comunidade brincam com música. Brincam de imitar os versos dos adultos, a forma de cantar destes,  de construir diferentes rimas, misturam as letras e melodias conhecidas com versões próprias e com isso inconscientemente perpetuam a música do candombe mineiro. Percebi que a rotina da comunidade parece ser medida pelo trabalho.  Durante o período em que estivemos na comunidade, todos os afazeres tinham relação direta com a festa do Candombe: descascando aipim (mandioca), ascendendo um forno, varrendo o chão de terra, alimentando as galinhas ... todos trabalhavam.

Preparativos

A festa se inicia com uma reza, à exemplo de algumas ladainhas presentes no interior do país (no Maranhão também é muito comum). Depois disto têm-se o hasteamento da bandeira de Nossa Senhora do Rosário. Enquanto isto os tambores estão sendo aquecidos na fogueira. Inicia-se a festa com os cantores versando e os tambores sendo tocados com acompanhamento de instrumentos de corda, que quase não são ouvidos.
No meio da cerimônia há a aparição de uma representação de um boi colorido adornado de chita que passa assustando à todos principalmente às crianças. A festa tem um intervalo para que todos se alimentem e depois volta com os versadores até os primeiros raios do dia.
Do ponto de vista musical, é interessante ver a função desempenhada por cada um do trio de tambores, as convenções rítmicas e outros meios de comunicar o início e o fim de uma música. Os moradores do açude parecem lidar muito bem com a quantidade de pessoas que os visita para festa e se tornam verdadeiros protagonistas da cerimônia.

A Cachaça

 Como não poderia ser diferente faço aqui uma menção à Cachaça. Esta acompanha o evento do início ao fim. Como a casa de Dona Mercês estava muito cheia a cachaça era servida em um filtro de barro, portanto cada um pegava seu copo e se servia, com o acompanhamento de caldo de feijão, bolo de milho, café ou bolo doce (comum). A cada ano a festa recebe mais gente e chama atenção pela receptividade de todos, para aqueles que estão hospedados na comunidade ou para aqueles que são apenas turistas curiosos.



Alambique do Sr. Vivi
Tive a oportunidade de visitar apenas um alambique na região, perto do armazém mais famoso da cidade. Armazém mesmo, daqueles de soleira de tronco de árvore e balança no balcão, onde se acha boa cachaça (a maioria vem de Conceição do Mato Dentro), queijos e doces.

Roda d´'água toda em madeira
Cochos de fermentação
Armazenamento
Parol de envelhecimento
O Administrador do alambique é o Sr “Vivi” que abriu as dependências mesmo sem estar em funcionamento. Os donos não estavam presentes e na oportunidade Sr Vivi disse que a produção estava interrompida. Muito interessante as instalações onde se percebem artefatos de um modelo de alambique cada vez mais raro, com roda d’água, paróis de armazenamento, dornas e cochos de fermentação cavados em tronco. A impressão que temos é de estar em um museu que guarda as características do modo de produção da bebida ainda no período colonial. Ressalto que sob a intenção de modernizar e regulamentar sua produção (o que é louvável), muitos donos de alambiques têm destruído registros como este, sem se preocupar com o valor histórico destas construções.






Serra do Cipó

As Cachoeiras

As cachoeiras que visitei, principalmente as de dentro do parque nacional da Serra do Cipó, chamam atenção pela beleza e pela diversidade de tons de cor que a água reflete.  Diferentes cachoeiras com tons de verde, azul e até avermelhado. 

Fora do parque algumas cachoeiras e poços estão localizados em áreas particulares, ou que estão prestes a se tornar particulares, o que impede o livre acesso das pessoas  ou que se tenha que pagar uma taxa ao dono da propriedade. Aqueles que frequentam balneários no país têm visto se multiplicar este tipo de comércio que se servisse para a preservação ainda teria algo de positivo. Infelizmente alguns donos destas terras simplesmente cobram do turista uma taxa e não revertem nada para a preservação da atração (vi muito disto no complexo de cachoeiras da Zilda em Carrancas também em Minas Gerais e na cachoeira da Pratinha, Chapada Diamantina-BA)        
 Recomendo uma visita à região, pela Música (Candombe), pelas belezas naturais (cachoeiras e parque nacional), pelos sabores (cachaças) e pelas pessoas (a comunidade do açude é muito especial). E precisa mais motivo?
Agradeço aqui aos companheiros de viagem da Orquestra Revelia (amizade e tambores são tocados com o carinho das mãos), que compartilharam comigo destes momentos e cederam estas imagens. Agradeço à comunidade do Açude, pela gentileza e recepção afável e por que não....à Nossa Senhora do Rosário!

Dona Mercês 

“(...) quem for lá no açude, guiado por tambor
    sobe o mastro e a bandeira, desce flor
     Êh boi passa e assusta
     menino corre não
     ao candombe do cipó minha canção
     à Senhora do Rosário
     minha Oração(...)”

     (Thiago Pires, Candombe do Cipó, 2012)

segunda-feira, 13 de maio de 2013

De Barris e Tambores (Maranhão)


 De Barris e Tambores

  A relação destes dois objetos sempre foi muito próxima. Certamente alguns dos primeiros tambores vindos da Europa, África ou feitos aqui mesmo, eram barris adaptados. De fato nada melhor que levar um som com o que sobrou da bebida...
  A música necessariamente fez parte da rotina das primeiras embarcações. São frequentes as representações de paisagistas do período da colônia retratando os tambores feitos de barris. Os nativos se utilizavam principalmente de troncos para os seus tambores.


 Tentando revezar uma postagem sobre música e outra sobre cachaça, vamos continuar falando do Maranhão. Lembram-se da postagem  “Maranhão: longa história com Cachaça”? Pois bem, esta postagem será sobre nossos mais antigos “marcadores de ritmo”, com toda reverência, os tambores, aqui representados pelo Tambor de Crioula.


   Quando se fala de música maranhense a primeira lembrança que temos é o Bumba- meu-Boi (não confundir com o Boi-Bumbá do Pará). Os grupos folclóricos que produzem a festa do Boi (durante o período dos festejos juninos) possuem peculiaridades como diferentes acompanhamentos rítmicos (sotaques) que variam de região para região (Boi da Baixada, Boi da Madre Deus, Boi Barrica, Boi de Morros...), instrumental que vai desde uma orquestra de sopros (fanfarra) aos grupos que tradicionalmente se utilizam do banjo como instrumento harmonizador e acompanhador.
  Como não vamos falar do Boi, prefiro não me alongar. Lembro que boa parte das células rítmicas presentes no folguedo do Boi dialogam com Tambor de Crioula, mais uma manifestação de matriz africana que chegando no Brasil sofreu a influência e influenciou outros gêneros, europeus  e nativos.



 É importante registrar que o Maranhão recebeu em suas terras negros de diversas regiões da África: Guiné, Costa da Mina/Forte de El Mina (costa leste do castelo de São Jorge da Mina atuais repúblicas de Gana, Benin, Togo e Nigéria), mais conhecidos como negros  mina-jejês e mina-Nagôs.  Esta diversidade permitiu que algumas manifestações  culturais fossem praticamente únicas do Maranhão, apesar de semelhanças com manifestações folclóricas de outros estados .
  Cabe também não confundir o Tambor de Mina com o Tambor de Crioula. Apesar de serem genuinamente maranhenses, o primeiro é uma manifestação essencialmente religiosa e frequentemente associada aos terreiros, com a ocorrência de transes. A segunda também possui o apelo religioso (muitas rodas de tambor de crioula são feitas em louvor a São Benedito  ou outro santo como pagamento de promessa), mas não se caracteriza apenas religiosamente pois aborda outras temáticas , podendo em uma roda de tambor de crioula haver duelos entre cantores versadores (a exemplo do que ocorre no jongo), temas satíricos,  dentre outros. Muito da confusão entre estes dois exemplos vem de semelhanças como a predominância de mulheres na organização, na dança( só as mulheres dançam em ambos exemplos)  e na música ( são os homens que geralmente executam os tambores).
  É interessante apontar que estas são manifestações que assim como no Candombe Mineiro( não confundir com o Candombe Uruguaio), no Candomblé, no Jongo, os protagonistas são os tambores, que em vários exemplos de origem africana são responsáveis por “ligar” os guias espirituais às cerimônias através de seu som e toques.


  Estivemos no espaço cultural de Mestre Amaral em janeiro deste ano de 2013, sob recomendação do “corintiano- A Maquina” vendedor de Cachaças e batidas mais conhecido do mercado da Praia Grande e talvez da ilha. Ao que parece o espaço de Mestre Amaral ainda não é tão conhecido, mas pela receptividade deste e de todos, certamente está reservado a ser um importante ponto de cultura de São Luís ( fica bem pertinho do palácio dos leões no centro histórico).
  Fica aqui meu agradecimento a : Jaqueline Luz pelas imagens, Hindelino Pires e Glória Fontenelle pela ótima companhia.  A Mestre Amaral que é desses homens de fala mansa, sorriso iluminado, bom de prosa e que sabe receber o visitante. Confesso que ainda não tinha visto uma devoção tão grande a São Benedito.
    São Benedito, padroeiro da cachaça. Ao que parece há mais proximidade entre tambores e barris do que sugere nossa vã filosofia.

terça-feira, 5 de março de 2013

Maranhão: longa história com cachaça




Porta do Memorial da Família Macatrão. Brejo-MA
Depois de longo e tenebroso verão volto ao blog. Minha última viagem percorreu dois estados muito próximos entre si e parecidos, embora guardem suas particularidades na arte e nos sabores. Estive de 25 de dezembro a 10 de janeiro no estado do Maranhão percorrendo os municípios de São Luiz (capital), Alcântara, São José de Ribamar, Santo Amaro e Brejo. Desta última fui à Parnaíba, Luiz Correa e Teresina no Piauí ficando neste estado 5 dias.
Moenda. Memorial da Família Macatrão. Brejo-MA
  Minha relação com o Maranhão é transcendental. Sou o verdadeiro “marioca”. Filho de maranhenses nascido no Rio de Janeiro. Há oito anos não visitava o estado e senti muita necessidade de me reabastecer com a nordestinidade desta terra.
  Como não poderia ser diferente, já começara a pesquisar sobre as cachaças do estado ainda aqui no Rio de janeiro. Procurei as regiões produtoras e possíveis marcas registradas, ou se não registradas, com uma procedência confiável.  Com rótulo só achei a “Azulzinha Maranhense” que é de fato uma cachaça com o rótulo azul e registro no ministério da agricultura, infelizmente não consegui comprá-la. No único restaurante que a vi disponível fui informado de que era apenas para “decoração”. Este tipo de desconhecimento no atendimento, no apresentar da cachaça, só desanima aqueles que dependem da divulgação para manter o negócio. Todas as demais cachaças que encontrei não possuíam rótulo. Apesar da história das aguardentes do maranhão ter como protagonista a Tiquira (destilado de mandioca) e este ser praticamente o único estado que produz esta bebida, me impressionei com a produção de cachaça da região conhecida como baixada maranhense. Santo Antônio dos Lopes, Penalva, Brejo, Santa Inês, dentre outros municípios, produzem cachaças que são consumidas na própria localidade e só quando sobram  chegam em São Luiz. Pelo período que estive e pelos hábitos locais que observei a cachaça é tão ou mais consumida que a tiquira, que representa mais o lado folclórico da produção de aguardentes do Maranhão.
Destilador de Cobre com Serpentina. Memorial da Família Macatrão. Brejo- MA
  É triste mas importante denunciar a falta de idoneidade dos produtores/ atravessadores  que naturalmente misturam os mais diversos produtos nas aguardentes para que estas tenham rosário (p. ex. : sabão em pó), tenham maior rendimento(água) ou que sugiram a infusão com a folha de tangerina (p. ex. : anilina). A população se refere a estas como cachaças “manipuladas” que são mais uma página da omissão do poder público do estado no que se refere ao controle do que se compra, vende e consome no estado.  As normas de higiene ainda são assunto tímido nos processos de produção de Cachaça, Farinha e Tiquira desta região. Lembro que a farinha da mesma maneira que a cachaça, é culturalmente presente em todas as regiões do país, merecendo também ser resignificada e respeitada já que está presente no prato do brasileiro com diversas variações regionais( farinha de mesa, farinha d'gua, misturada com côco...). Percebi algumas Tiquiras com alguma preocupação de apresentação e qualidade como a "Magu" e a "Tiquira da Fazenda" de Barreirinhas e que apresentava em seu rótulo informação de estar de acordo com as normas laboratoriais do MAPA(Ministério da Agricultura), mas foram as únicas iniciativas.
  É interessante perceber que a própria população tem conhecimento do nível de qualidade do produto que consome a medida que esteja mais próximo do produtor. Mesmo quando sabem que a cachaça é adulterada continuam consumindo-a sem ter na maioria das situações, noção dos possíveis malefícios que estas bebidas podem ocasionar. Esta situação é realmente alarmante!
  Surpresa foi saber que parte da família de meu pai havia produzido cachaça no distrito de São Roque no município de Brejo. O equipamento de destilação e a moenda estão atualmente expostos juntos com outros utensílios como fôrmas de rapadura, tachos, carro de boi contando a história da família e de certa forma a história da vida privada no Brasil de cem anos atrás. Tudo isto exposto no memorial da família Macatrão, obra cuidadosa de tio Roque Pires Macatrão que merece visita aos dispostos a ir à Brejo.
  Saí de Brejo rumo ao Piauí com desejo ainda maior de conhecer a parte sul do Maranhão. Por suas cachoeiras (chapada das mesas) e pela fama de suas cachaças. 
  Quanto à música do Maranhão? Esta é uma dose que será degustada exclusivamente em postagem futura onde falarei do Tambor de Crioula de Mestre Amaral e sua forte relação com São Benedito. Aguardem a próxima alambicada!

Piauí: uma agradável surpresa



Rótulo da Cachaça "Lira"


A Lira e sua história
 
Em se tratando de cachaça, o que conhecia do Piauí era a “Mangueira” e a “Lira”. A primeira se encontra facilmente em qualquer supermercado de Teresina ou Parnaíba, a segunda não. Procurei muito a Lira só vindo encontrá-la para venda no centro de artesanato de Teresina. Bebi da Lira em uma praia chamada “praia grande”. Com um sol daqueles, eu e meu camarada Vítor Medeiros matamos quatro doses. E realmente é uma cachaça que merece atenção. Persistência de pequenas bolhas, tom amarelo tendendo a dourado âmbar e viscosidade de marcar o copo. No nariz a lembrança de amêndoa verde beliscada com a unha (ou madeira verde). O Rótulo só se refere a “Armazenada em tonéis de madeira”, mas ao que tudo indica é carvalho, ainda que possa ter outra madeira. Uma cachaça com acabamento requintado quando comparada às demais, principalmente quando comparamos com a famosa Mangueira. Realmente a Lira (a autêntica cachaça de Amarante ,como diz o rótulo) com sua história (desde 1889) se destaca como uma agradável surpresa das cachaças nordestinas que tive oportunidade de degustar (40° Gl). 

Rótulo da Lendária "Mangueira"

Cachaça Siri


    No Aeroporto de Teresina tive a oportunidade de conhecer a Sra Anísia, nome sugestivo no mundo da cachaça (não tinha como não lembrar do Sr.Anísio Santiago). Sua loja foi a maior referência de cachaças do Estado do Piauí (em diversidade de rótulos). Estado que como o Maranhão guarda mistérios arqueológicos, mitos e lendas  e que  também precisam ser lembrados  por sua importante história na Cachaça do nordeste. Recomendo aos amantes da cachaça uma visita à loja.


Cachaça Magnitude (honestíssima surpresa)

Cachaça Tapuia

Cachaça Concebida
Contra- Rótulo da Concebida
  Já no Rio pude apreciar a “Magnitude” (A mais pura do Piauí segundo o rótulo), esta cachaça já teve o nome de Magnífica, e atualmente atende por  “Magnitude”. A cachaça branca, muito característica, lembrando um pouco a Rainha-PB, mas muito mais suave.  O mesmo aconteceu com a ouro que também sugeriu o carvalho e se mostrou com bom acabamento.
  Confesso que não esperava encontrar cachaças tão interessantes no Piauí, mais um motivo para voltar à terra da Cajuína.
  Encantei-me com a magnitude, cachaça, e com a magnitude das cachaças do Piauí.

Encerro com este poema de Torquato Neto
Rótulo da Cachaça "Castelense"

Teresina:
Ausência
De uma presença...
Presença
Da mesma ausência...
Só memória na memória
Sempre viva
Só saudade... só distância...
Só vontade....
e um ardor medonho no peito.
 Rio, 23/08/1962



Thiago Pires