Uma
característica do universo da cachaça é a diversidade. Temos visto muito se
falar da diversidade da cachaça a partir das madeiras para armazenamento. Este
assunto é importante mas acaba por ofuscar um outro ponto que é a diversidade
de processos fermentativos na bebida, assunto geralmente mais debatido entre
produtores e especialistas.
A fermentação
é a etapa responsável pelo DNA da bebida. As informações referentes à matéria
prima e seu habitat (canavial/campo) estarão presentes no produto final graças
ao sucesso da fermentação.
É assim que o doce da cana, do mel, do melado de cana, rapadura, o
erval (capim/ mato molhado), o frutado (às vezes até referência de casca de
frutas como goiaba verde sugerindo uma “trava” ou “nódoa”), os legumes cozidos
(milho, canjiquinha, milho verde cozido, curau de milho, às vezes mandioca e
batata doce cozidas), o cheiro de fermentação (massa de pão), o ligeiro cítrico
confundido com azedume (bagaço de cana) estarão presentes na bebida.
Para quem
acha que isto é pouco lembro que há um repertório de sensações que misturadas
podem sugerir o medicinal, o baunilha, floral e até calda de frutas. Em uma Matriz, isto mesmo na cachaça pura/ de inox, sem amadeiramento.
Há pouco
tempo atrás era muito comum degustarmos cachaça com gosto de queimado denunciando
a presença de oléo fúsel ou furfural na bebida. O processo de queima do
canavial para facilitação do corte comprometia e acompanhava a bebida desde sua
primeira etapa, corte, até sua última etapa, a degustação. Felizmente para a
produção de cachaça de qualidade esse hábito caiu em desuso embora presente de forma ilegal.
Nota-se
portanto que a fermentação é algo a ser mais considerado no estudo dos amantes
do assunto cachaça.
Elaboração de um pé de cuba |
A ideia deste
texto é além de apresentar a importância da fermentação para a sensibilidade do
degustador, colocar as matrizes (puras/inox) no seu devido lugar de importância
onde podem sim apresentar complexidade sensorial. Uma complexidade diferente da
encontrada nos amadeiramentos mas não necessariamente menor, pior, ou
secundária. Na verdade, pela ordem das das etapas, a complexidade das matrizes é
primária, fundamental até para a análise dos exemplares amadeirados.
Antes falaremos um pouco de história
Foto arquivo histórico cachaça Dama da Noite |
Resumidamente a fermentação é a etapa da produção de cachaça onde as leveduras
(micro-organismos) presentes na dorna de fermentação transformam o açúcar do
caldo de cana em álcool e gás carbônico.
Do latim fermentare (ferver) a fermentação alcoólica acompanha a
humanidade no decorrer da história. A diversidade das culturas agrícolas do
globo pode ser percebida pelo produto de fermentações. A cerveja e fermentados
como os de mel e uva são testemunhos disto.
O Brasil é bem novo no assunto porém em seus quinhentos anos de história
foi apresentando ao mundo fermentados como os de milho (Aluá ou Chicha na
américa hispânica) e Mandioca (Cauim) só para falar dos mais conhecidos.
Se por um lado fermentados como os de milho vieram a se propagar e mesmo
virar destilado como o Bourbon nos EUA, outros vinhos destilados como a Tiquira
(produto da fermentação da mandioca) ficaram restritos à sua área original (Maranhão).
Fermentada a partir das borras do melado (aguardente) ou diretamente do
caldo de cana (Cachaça) as aguardentes de cana tem conquistado cada vez mais
amantes pelo mundo e chamo atenção para um fato:
A cana enquanto matéria prima possui uma característica bem marcante: é
extremamente doce, o que lhe confere
um frescor sensorial muito diferente de outras matérias primas que ricas em
amido ainda precisam passar pela transformação deste componente em glicose,
caso do Agave da Tequila ou dos cereais do Uísque. Na verdade no caso do Uísque
muito têm se associado o “defumado” da bebida somente aos barris de carvalho para
armazenamento sem se considerar que uma das etapas da elaboração da fermentação
dos cereais é a interrupção da germinação destes cereais através de fumaça
método conhecido como “peat”. Aos interessados recomendo o seguinte vídeo:
Bem, mas se o blog fala de cachaça porque um vídeo sobre uísque? Como já
afirmado a matéria prima da cachaça é utilizada praticamente in natura já que
só sofre a extração do caldo. Não é cozida ou defumada. É crua, virgem, fresca!
Este é um ponto importantíssimo: o brasileiro de estatura mediana ( como
diz Edu Lobo) em 99 por cento dos casos já bebeu um caldo de cana ou mesmo já
teve a oportunidade de prová-la no próprio canavial.
Esta é uma referência
sensorial crucial para análise das matrizes. Até porque na boca do povo ela é cana, caninha, pau do capuxo, suco de cana...
Na próxima postagem apresentaremos diferentes tipos de fermento. O assunto é abrangente portanto não percam o tempo da fermentação.