Alguns passos que damos em nossas vidas nos levam para um
acerto de contas de coisas das quais nos interessamos (às vezes
inconscientemente) e pelas quais acabamos sendo porta-vozes de vozes roucas ou
quase mudas.
Sempre me interessei pelo sertão brasileiro e isto têm se
manifestado através da música (desde que me entendo por gente) e por alguns de
seus símbolos como a cachaça. Estas, a música e a cachaça, têm sido ao mesmo
tempo companheiras e motivo de viagens e o que têm se descortinado para mim é
místico, real e ancestral. Acredito que após lerem esta matéria talvez compreendam isto.
A força do Sotaque
Ainda criança observava o sotaque de pessoas do interior,
principalmente do nordeste brasileiro e achava muita semelhança na forma como
falavam ao lidar com as pessoas e com o gado. “Ê boi” e “ê rapá” são exemplares. Quando
comecei estudar um pouco a cultura do Sul do Brasil observei este mesmo
fenômeno. Expressões como “Fala vivente” ou “Fala índio velho” denunciavam a
mesma origem do sotaque. A sonoridade das palavras acentuadas na primeira
sílaba e expressões curtas demonstrando que para o trabalho com gado e cavalos
há uma forma de emitir sons e ruídos que pode se confundir, mesmo em dois
lugares tão distantes como o pampa e a caatinga.
Neste novembro estive na Mostra Sesc Cariri- CE para
apresentar o “Baile Ambulante” com a corajosa e porque não dizer “cabra da
peste” Fanfarrada, grupo de percussão e instrumentos de sopro onde deposito ar,
som, tempo e vida junto com alguns companheiros. A partir desta oportunidade
nasceu o relato das experiências vividas em Juazeiro, Crato, Barbalha, Nova
Olinda e Assaré.
"Enjoazeiro"
A descida no aeroporto de Juazeiro do norte foi algo pra se
esquecer devido às turbulências do vôo. Um episódio batizado de “Enjoazeiro”,
algo que depois ficamos sabendo que deve-se à força dos ventos na região na
parte da manhã. Os dois primeiros dias foram de trabalho junto com a equipe da
Fanfarrada e nossa programação ficou muito por conta da agenda do festival.
Ainda assim falando de lazer, pudemos conhecer o bar “Oásis” onde fica a
nascente que abastece o Crato e que não decepciona a apresentação do nome. Água
farta, piscina de água natural, cerveja a preço justo e um peixe frito
inesquecível. Isto no meio de um calor que só quem passou do meio da Bahia
rumando para o norte conhece.
A mostra Sesc Cariri reúne
artistas de diversas linguagens e regiões do país e além de proporcionar à
população variedade de espetáculos, possibilita que artistas troquem experiências no que se refere a fazer arte nesse Brasil. Foi assim que mesmo
sendo ambos do Rio, eu e o violonista Zé Paulo Becker, pela primeira vez,
pudemos beber uma cerveja e conversar sobre produção cultural. Imagine, no
Ceará!
Em relação às apresentações tocamos em duas praças, uma em
Juazeiro e outra no Crato, tempo suficiente para perceber o acolhimento da
população, a força de valores católicos e principalmente do nome Padre Cícero.
Com todo respeito, Padre Cícero está para Juazeiro assim como São José de
Ribamar está para o Maranhão e isto se percebe nos nomes de pessoas, lugares e
estabelecimentos. De certa forma até na imagem símbolo da cidade. Juazeiro,
cidade de comércio forte, Crato clima bucólico. Em ambas uma gente muito
autêntica, fruto da importância histórica da região.
Fanfarrada em Juazeiro |
Enquanto músicos gostaríamos de ter tocado em outros lugares na região independente da programação do Sesc e após o retorno da maioria do grupo da Fanfarrada percebo que espaços como como a
cantina Zé Ferreira (Juazeiro) ou o bar do Naldinho (Crato), poderiam nos acolher por serem lugares de
encontro do povo jovem da cidade, universitário (URCA- Universidade Regional do Cariri) e
que me pareceu super aberto a novidades artísticas.
Vou pro Crato
Acervo do museu da ONG Beatos |
O interesse pela
região era antigo e ao escutar músicas como “Eu vou pro Crato” pude entender
melhor a relação de proximidade de Luiz Gonzaga com aquela cidade. Frases como:
“... tomar banho de nascente na subida do
lameiro tomo uns trago de aguardente...” passaram a fazer todo sentido
depois desta viagem até porque inusitadamente acabei hospedado em uma casa no
bairro do Lameiro, graças ao amigo Thiago Queiroz, saxofonista que além do nome,
teve em comum o desejo de alongar sua
estadia no Cariri.
O espírito do museu |
Agradeço aqui mais uma vez a Dani da ONG Beatos que além de
nos acolher em sua casa nos apresentou seu museu de tradições e valores
culturais do Cariri. Em pouco tempo foi possível perceber a consistência de seu
trabalho a favor da cultura local.
Respeita os Oito Baixos
Uma das apresentações que pudemos assistir na programação
desta 17°mostra Cariri foi a de um sanfoneiro de oito baixos impressionante. Sr
Chico Paes! A correria de tocar, deixar os instrumentos no hotel (onde ficamos
hospedados no início) voltar para Juazeiro e depois ir para o largo da RFSA, no
Crato, fez com que chegássemos já no fim de sua apresentação e curtíssemos apenas
duas músicas e um acalorado pedido de bis, atendido com vigor para um senhor de
noventa anos. Quem estava dividindo o palco com o Sr Chico Paes era Guilherme
Mará, que eu já conhecia aqui do Rio. Posso dizer que de certa forma sempre
acompanhei o trabalho de Mará através do Forróçacana, vez ou outra esbarrava
com ele pelo bairro das laranjeiras aqui no Rio, mas nunca tive a oportunidade
de trocar uma ideia com o cara. Vê-lo ali produzindo aquele senhor, farto de
arte, com ares de utilidade pública me fez admirá-lo ainda mais, mesmo sem
ainda ter tido uma prosa com o cara. Após a apresentação fomos conversar com
Mará e Mirele sua esposa. Thiagô (como de fato é conhecido o Thiago Queiroz, a
lenda carnavalesca) já os conhecia há muito tempo e isto foi importante para
ali naquele momento definirmos o roteiro de um passeio pelo sertão do Cariri. Cariocamente,
ou seja sem compromisso, cogitamos a possibilidade de ir a Nova Olinda na casa
do Sr Espedito Seleiro, celebridade do mundo Cariri, famoso por seus trabalhos
em couro e na sequência aproveitar para visitar mestre Chico Paes em Assaré,
terra de outro grande mestre: O Patativa do Assaré.
Alugamos um carro e no
primeiro dia eu e Thiagô fomos à Barbalha, município próximo de juazeiro que fica
na direção da serra do Araripe onde conhecemos o distrito de Caldas. Para não
perder o hábito, decidi por aproveitar a oportunidade e visitar a unidade de
produção da “Kariri com K”.
A Kariri com K
Na distribuição da Kariri com K |
Antes de ir ao Cariri
já tinha estudado a tradição da produção canavieira na região. Historicamente a
região sempre produziu cachaça porém com o processos de industrialização da
década de cinquenta do século passado, os alambiques deram lugar às usinas. Os
dois estados do nordeste que mais “industrializaram” sua produção de cachaça
foram Pernambuco e Ceará e ainda hoje as duas maiores marcas de cachaça do
nordeste ilustram a força desta industrialização: Ypióca-CE, Pitu- PE.
Em meio aos tonéis de Freijó da Kariri com K |
A experiência na visita a alambiques faz com que já
esperemos um cenário mais ou menos previsível em relação a uma unidade
produtora de cachaça. A entrada geralmente uma porteira, já no caminho um
canavial e ao fim a destilaria que pode ou não ficar próximo à sede da fazenda,
ou escritório. Pois bem, no caso da “Kariri com K” na unidade de Barbalha o que
vimos foi apenas o escritório. Eu e Thiagô fomos muito bem recebidos por um
casal de funcionários. O rapaz contou-nos sua trajetória na empresa que ali
naquele lugar era na verdade uma unidade padronizadora, engarrafadora e
distribuidora de cachaça. Alambicar mesmo isto eles não faziam. Mas como a
cachaça surgia ali? A cachaça vem de Pernambuco (fica realmente muito próximo)
e ali é engarrafada. Perguntei de que cidade vinha a cachaça e o funcionário
não soube responder. Resumindo: a kariri com K, pelo menos aquela de Barbalha
que é a sede da empresa, é produzida em Pernambuco. Trata-se de uma cachaça de
coluna muito antiga na região e que é distribuída para todo o nordeste, Rio de
Janeiro e São Paulo.
Ao que sei atualmente a região produtora de cachaça de alambique do
Ceará fica ao norte, na serra de Ibiapaba e em municípios como Viçosa e Carnaubal. É o
rumo do Piauí. Lá se produzem cachaças de alambique mais conhecidas como a
“Rapariga” ou a “Guaramiranga” mas também produzem cachaça de alambiques sem
registro. O que aqui no sudeste alguns chamam genericamente de “Cachaça de Minas”
para designar a cachaça de alambique, no norte do Ceará eles chamam de cachaça
da “Serra” ou simplesmente “Serrana”. Fica a dica.
Até o fechamento desta postagem tive conhecimento de um
curso de produção canavieira no CENTEC de Barbalha (Instituto de ensinotecnológico) mas não obtive maiores informações de como está o projeto que foi
construído com o intuito de reestabelecer a cultura canavieira na região. Oxalá
tenhamos novidade no mundo da cachaça do Cariri.
Após esta visita, rumamos para o Balneário de Caldas ainda
em Barbalha. Uma área de mata atlântica muito bem preservada, com várias espécies de árvores identificadas e com uma nascente que intitulam a mais pura
da região nordeste, além de algumas piscinas. A nascente fica em uma gruta e
lembra a pureza das águas de São Lourenço- MG, com uma diferença: você pode
banhar-se em suas águas. Lugar recomendadíssimo para os que forem no roteiro Juazeiro/Crato/Barbalha
(Crajuba). Para quem gosta de árvores como eu, é uma oportunidade de ver
exemplares como : “Frei Jorge”, também conhecido como Freijó madeira muito
utilizada para armazenamento de cachaça no nordeste, o Pau Branco, o Louro e o Gitó. A estrutura e a organização do
parque são um show a parte.
Assaré
No dia seguinte, já cedo partimos em comitiva para Assaré,
eu, Thiagô, Mará, Mirele e Flor, a filha do casal. Mará na direção junto de sua
esposa apresentava os lugares e compartilhava conosco a fantástica experiência
de largar tudo no Rio de Janeiro e rumar para o nordeste levando a própria
mudança em um Santana Quantum. Os desafios, o encantamento com a tranquilidade
da população, as dificuldades e as mudanças do Rio de janeiro dos últimos anos e
a força da política nas relações do interior nordestino. Tivemos tempo até de escutar do casal o relato
da dificuldade de manter uma dieta sem carne no nordeste.
Na verdade o que percebi é que os cariocas possuem muito da
cultura nordestina a partir dos nordestinos. O meu caso é um exemplo, sou filho
de maranhenses, possuo uma identificação com a cultura nordestina muito grande
mas o que conhecemos do nordeste é ainda algo muito superficial porque na
maioria dos casos estamos no nordeste por pequenos períodos e nosso
aprofundamento sobre a região nunca é muito grande pois a referência de tempo,
distância e mesmo outros valores, estão ligados a cidade grande e seu ritmo (no
caso o sudeste). Minha identificação com Mará foi grande por perceber nele o
interesse de ser um pouco o nordeste, muito mais do que estar no nordeste.
Percebi o prazer dele em falar das cidades daquela região com se já fosse de lá
e vez ou outra apresentava um lugar a partir de uma música, como se essa fosse
o veículo e razão de estar ali. Pareceu-me a história de uma pessoa que gosta
de música flamenca e vai morar no sul da Espanha, gosta de artes marciais e vai
para o Japão. No caso dele o forró o levou para o Cariri.
Antes de chegarmos na casa do Sr Chico Paes Mará explicou a relação que tem criado com o
artista e o interesse de promover a obra do Sanfoneiro. Mará produziu o
trabalho de outro grande poeta da Oito Baixos: Zé Calixto, este último
residindo aqui no Rio. Foi muito rico perceber a história que têm construído
com a Oito Baixos e seus representantes.
“Anima minha gente que chegou o sanfoneiro”
Chegamos na casa de Chico Paes, a esposa nos acolhe em uma
sala simples que estampa com orgulho banners e painéis do artista da casa que não
se encontrava naquele momento. Na sala Mará
começa a tocar sua oito baixos. Pego um Cavaquinho que Mará levara e começo a
acompanhá-lo, em pouco tempo já estávamos mais próximos, desta vez fazendo
música. Minutos depois chega Chico Paes na garupa de uma moto. Imagina, um
senhor de noventa anos na garupa de uma moto! Sr Chico impressiona pela
vitalidade e lucidez. A partir dali a conversa passou a ser o último show que
fizera no Crato, seu retorno para Assaré e os planos. Fomos para o interior da
casa, para a cozinha. Lembrei da casa de minha avó, onde a cozinha era sempre
mais acolhedora que a sala. Mais um pouco vamos para a área no fundo da casa,
quando seu Chico começa a tocar. Minha cabeça naquele momento vira um turbilhão
de sentimentos. A agilidade de Sr Chico com o instrumento, a cena dele sentado
na rede, remeteu-me a referências nordestinas como os senhores lá do Maranhão
(Tio Joaquim no Brejo ou Tio Alcir em Codó).
Posso dizer que “levamos um som” com Sr Chico Paes que também é bom de prosa.
Pergunto-lhe se chegou a conhecer o velho Januário (pai de Luiz Gonzaga). Diz
que não, mas que seu pai sim e falava muito bem dele. “...O cabra era bom
mesmo...”. Pergunto a Sr Chico se ainda compõe e ele mostra o “Rasga lata”,
música que têm desenvolvido nos últimos dias.
Sr Chico aprendera a
tocar ainda criança, com o pai. Percebi que as relações de aprendizado da Oito Baixos
se davam em outro momento a partir de laços familiares e que este instrumento
apresentava a forma como os antigos se divertiam. Durante o dia: roça,
vaqueiro, no fim do dia sanfoneiro. Além de Zé Calixto, Luiz Gonzaga e Januário
outros sanfoneiros foram citados como Dominguinhos e por mais longe que
estivesse: Borguetinho!
Sempre fui fã de Borguetinho. A opção de fazer música
instrumental regional o faz referência para muitos artistas e destes, talvez eu
seja um. Até hoje também não encontrei alguém que falasse mal do indivíduo, e
ali a quase três mil quilômetros de distância vi o quão longe pode chegar a
generosidade de uma pessoa. Mará nos conta que em um determinado momento
fizeram uma campanha para comprar um novo instrumento para Chico Paes. Diz que
esta campanha tomou proporções tão grandes que chegou ao conhecimento de
Borghetinho que enviou um instrumento para o sanfoneiro nordestino. Quando vi o
instrumento me emocionei.
Abrindo um apêndice, no filme “ A linha fria do horizonte” dirigido por Luciano Coelho, artistas e
pensadores defendem o Pampa, como uma
região autêntica com estética própria que muitas das vezes não é representada
pela grande mídia. Eu, Thiago Pires convido qualquer cineasta interessado a produzir “ A linha quente do Horizonte”
porque a Caatinga, é outro lugar que não é representado pela grande mídia
brasileira. Resquícios de valores ultrapassados da Europa associaram o calor à pobreza,
como se menos oferta d’agua na caatinga fosse desequilíbrio, como se o bioma
dos espinhos e cactos não fosse vivo. Essa cultura ultrapassada só não
conseguiu falar mal das pessoas e do céu porque estes são inquestionavelmente
belos. Total desconhecimento da Caatinga! A estética da Caatinga é própria
ainda que menos presente no imaginário de muitos brasileiros. Isto acontece com
a região norte também quando escutamos o termo “Amazônia” de forma tão abrangente que muitas
vezes não significa nada.
Quando vi a sanfoninha de Borguetinho, rústica, com um
belíssimo trabalho de entalhe na madeira senti o sul muito próximo. O sul do
amigo Moraes. Gaúcho de Arroio Grande- RS, e responsável por me apresentar, a
partir da música, uma perspectiva muito interessante sobre a cultura campeira,
nativista, criola. A relação com o cavalo Criolo no trabalho com o gado é uma
temática recorrente na vida do gaúcho e junto disso aparecem tantos outros
símbolos como as pajeadas, o mate e o couro. Conheci a obra do poeta Jaime
Caetano Braun e encantei-me tanto que batizei minha experiência com cachaça em
Saquarema – RJ, de “Tio Anastácio”, referência ao mítico personagem do poeta
gaúcho.
A ponte que ligava o sul ao norte estava ali, concreta. A
cultura do vaqueiro, o chapéu de couro e o chapéu campeiro, a gaita de ponto e
a oito baixos estavam lado a lado como se a distância física fosse
um mero
detalhe.
O Ceará é um estado que se constituiu a partir da cultura do
vaqueiro. Os vaqueiros foram responsáveis por descobrir outras rotas de
interiorização do Brasil e este êxodo dos vaqueiros na caatinga começa na Bahia
e atravessa pelo interior do nordeste até o Piauí. É importante lembrar que o
interior do Maranhão também absorveu bastante desta cultura principalmente
perto do Parnaíba, porém quanto mais a oeste do Maranhão, mais encontramos a
influência indígena da região norte, com a cultura da pesca e da extração. Traçar
um elo entre o sul e o nordeste a partir da cultura do gado não é nada difícil
e a Oito Baixos é um exemplo. Porque no sul durante muito tempo a rotina também
foi essa: na manhã peão, gaudério, ginete, a noite sanfoneiro.
Há muito tempo já traçava relações entre os versos de Jaime
Caetano Braun com o universo rural de Patativa do Assaré. Posso afirmar que é
muito fácil achar similaridades no mundo rural descrito por ambos. Um falando
do Pampa, o outro da Caatinga. Um no sul, outro no nordeste.
Saí da casa de Chico Paes alimentado de Oito baixos, sabendo
um pouquinho mais de “Onde vem o Baião” até porque estávamos a menos de
cinquenta quilômetros de Exu, cidade de Luiz Gonzaga.
Após um delicioso almoço caseiro seguimos viagem. Encontrar Sr
Chico Paes foi um imenso aprendizado do ponto de vista musical, humano, geográfico
e porque não dizer: sensorial. Marcante!
O Museu de Patativa
Placa numa rua de Assaré |
Visitamos o museu dedicado a Patativa do Assaré. Já tinha
lido muitos poemas do “Cante lá que eu
Canto cá” ed. Vozes e já conhecia uma pitada de sua obra. O que me
impressionou bastante foram depoimentos de que Patativa era capaz de elaborar
um poema para uma pessoa, ficar muito tempo sem vê-la e ainda assim recordar-se
do poema original, tudo de cabeça. Impressionante. No museu é possível comprar
cds e livros também. Chamo atenção que em muitas esquinas da cidade de Assaré
encontramos placas de identificação da rua com poemas de Patativa. É bom quando
topamos com arte em cada esquina literalmente.
O Seleiro de lampião
Nossa penúltima parada:
Nova Olinda. Já tinha visitado esta cidade no terceiro dia de viagem com mais
três companheiros de fanfarra. Na oportunidade fomos de van e estávamos reféns
do tempo. Fomos à loja de Sr Espedito Seleiro que lá não estava. Nesta segunda
ida, o artesão se encontrava com a família na calçada em frente a loja, a oficina
funcionando e tudo com um ar mais “vivo” do que na primeira vez. Mará nos
apresenta e começa a tocar na calçada, como se aquela sanfona fosse um cartão
de visita, um presente.
Conversei com Espedito Seleiro. Procurava um chapéu de
vaqueiro de aba larga. O que ele tinha lá só tinha três dedos de aba. Ele me disse: “...moço
já fiz muito disso aqui mas agora não
tenho não...” A partir dali começamos um bate papo em que não tive como não
lembrar de meu avô, o velho Miro, esse gostava de contar história! Espedito
tinha acabado de mandar um material para ser cenário do programa de Regina
Casé. Disse que após o término do aluguel do material a atriz global comprou tudo.
Comentei com ele: “..que bom que no final o senhor ainda saiu no lucro, como
diz o ditado : O bom vaqueiro não perde a viagem” ao que ele me corrige: “ O
bom vaqueiro não perde a corrida”. Conversamos sobre outros assuntos, conversamos até sobre Cachaça. Dissera que até hoje guarda uma garrafa de cachaça armazenada na imburana (Amburana Cearensis).
Capa da Sanfona de Chico Paes |
Cachaça de alambique que um amigo tinha lhe presenteado. Hoje
segundo ele, os engenhos e os vaqueiros são poucos, mas existem. Falamos sobre ciganos, sobre cobre. Explicou-me
que a roupa de couro faz muito sentido para o vaqueiro pois ainda que ele se
molhe e pegue sol no fim do dia sabe como cuidar da roupa. “...outro deixaria
jogado e no dia seguinte não conseguiria entrar na roupa, de tão dura...” É
isso mesmo, o couro endurece e o carinho com um pouco de banha, ajudam a
suavizar e amolecer a pele.
Contou como seu pai
tinha recebido a encomenda de elaborar uma alpargata para o Coronel Virgulino, o Lampião, e sobre o
pagamento em forma de uma Adaga “deste tamanho”
fala ele demonstrando com as mãos.
Na hora de ir, Sr Espedito de uma forma muito comum às
pessoas do interior fala: “...vê se vocês aparecem de novo...”.
Imagem no museu do couro ao lado da Casa de Espedito Seleiro universo gaudério e cabloco unidos pelo couro |
O trabalho de Espedito Seleiro é uma referência na arte em
couro e a estética de seu trabalho traz o nordeste em cada entalhe, alto e
baixo relevo. É recomendadíssimo conhecer sua oficina.
Ainda neste dia encerramos nosso estirão na fundação Casa
Grande, outro lugar especial.
Trata-se de uma ONG fundada
em 1992 que oferece atividades de complementação escolar através de seus
laboratórios de conteúdo e produção. Objetivando a interdisciplinaridade, atuam
na formação crítica dos jovens a partir da sensibilização pela arte.
Já tinha indo lá da primeira vez que estive em Nova Olinda. A
produção da mostra incluiu o teatro existente na fundação como um palco para
apresentação de companhias de teatro. O interessante é que os jovens da
fundação montam o palco, pilotam o som, cuidam da iluminação e da parte da
montagem do cenário. Enfim, surpreende ver uma galera de quinze anos ou até
menos com este tipo de conhecimento de forma atuante. Quando vemos as fotos das
celebridades que já visitaram a Fundação Casa Grande podemos perceber que
aquele ali é um espaço obrigatório no roteiro de viagem principalmente de quem
trabalha com arte, cultura e educação.
Na segunda ida, desta vez com Mará e família, encontramos com o pessoal da
carroça de mamulengos e uma garotada animadíssima compartilhando brincadeiras
e jogos coletivos. Quem brincou no fim das contas foi eu.
E Valeu o Boi
O Cariri é uma região que respira cultura. A cultura da
Caatinga, do Cangaço, de manifestações como o reisado e os bacamarteiros. Para
quem gosta de turismo cultural é um lugar indispensável para discutir a cultura
nordestina. Para quem gosta de belezas naturais a região também oferece
atrativos como Geo Parques (não visitei) e outros cenários que ficam sempre
mágicos com o pôr do sol daquela terra quente.
Encerro esta postagem agradecendo em nome da Fanfarrada à produção
do Sesc Ceará, principalmente Chagas (Chagas Sales Nogueira Lima) e toda
a equipe do Sesc. Agradeço também a Thiagô,
Geraldo Jr, Dani da Beatos, Mará, Mirele e Estrela.
Esta Postagem é dedicada a meu Tio avô Alcir Campello (1928- 2015), meu elo familiar com os foles, e ao Sanfoneiro pernambucano Camarão (1940-2015).