domingo, 20 de dezembro de 2015

"O bom Vaqueiro não perde a Viagem/Corrida"




Alguns passos que damos em nossas vidas nos levam para um acerto de contas de coisas das quais nos interessamos (às vezes inconscientemente) e pelas quais acabamos sendo porta-vozes de vozes roucas ou quase mudas.
Sempre me interessei pelo sertão brasileiro e isto têm se manifestado através da música (desde que me entendo por gente) e por alguns de seus símbolos como a cachaça. Estas, a música e a cachaça, têm sido ao mesmo tempo companheiras e motivo de viagens e o que têm se descortinado para mim é místico, real e ancestral. Acredito que após lerem esta matéria talvez compreendam isto.

A força do Sotaque

Ainda criança observava o sotaque de pessoas do interior, principalmente do nordeste brasileiro e achava muita semelhança na forma como falavam ao lidar com as pessoas e com o gado. “Ê  boi” e “ê rapá” são exemplares. Quando comecei estudar um pouco a cultura do Sul do Brasil observei este mesmo fenômeno. Expressões como “Fala vivente” ou “Fala índio velho” denunciavam a mesma origem do sotaque. A sonoridade das palavras acentuadas na primeira sílaba e expressões curtas demonstrando que para o trabalho com gado e cavalos há uma forma de emitir sons e ruídos que pode se confundir, mesmo em dois lugares tão distantes como o pampa e a caatinga.
Neste novembro estive na Mostra Sesc Cariri- CE para apresentar o “Baile Ambulante” com a corajosa e porque não dizer “cabra da peste” Fanfarrada, grupo de percussão e instrumentos de sopro onde deposito ar, som, tempo e vida junto com alguns companheiros. A partir desta oportunidade nasceu o relato das experiências vividas em Juazeiro, Crato, Barbalha, Nova Olinda e Assaré.

"Enjoazeiro"



A descida no aeroporto de Juazeiro do norte foi algo pra se esquecer devido às turbulências do vôo. Um episódio batizado de “Enjoazeiro”, algo que depois ficamos sabendo que deve-se à força dos ventos na região na parte da manhã. Os dois primeiros dias foram de trabalho junto com a equipe da Fanfarrada e nossa programação ficou muito por conta da agenda do festival. Ainda assim falando de lazer, pudemos conhecer o bar “Oásis” onde fica a nascente que abastece o Crato e que não decepciona a apresentação do nome. Água farta, piscina de água natural, cerveja a preço justo e um peixe frito inesquecível. Isto no meio de um calor que só quem passou do meio da Bahia rumando para o norte conhece.

A mostra  Sesc Cariri reúne artistas de diversas linguagens e regiões do país e além de proporcionar à população variedade de espetáculos, possibilita que artistas troquem experiências no que se refere a fazer arte nesse Brasil. Foi assim que mesmo sendo ambos do Rio, eu e o violonista Zé Paulo Becker, pela primeira vez, pudemos beber uma cerveja e conversar sobre produção cultural. Imagine, no Ceará!
Em relação às apresentações tocamos em duas praças, uma em Juazeiro e outra no Crato, tempo suficiente para perceber o acolhimento da população, a força de valores católicos e principalmente do nome Padre Cícero. Com todo respeito, Padre Cícero está para Juazeiro assim como São José de Ribamar está para o Maranhão e isto se percebe nos nomes de pessoas, lugares e estabelecimentos. De certa forma até na imagem símbolo da cidade. Juazeiro, cidade de comércio forte, Crato clima bucólico. Em ambas uma gente muito autêntica, fruto da importância histórica da região.

Fanfarrada em Juazeiro

Enquanto músicos gostaríamos de ter tocado em outros lugares na região independente da programação do Sesc e após o retorno da maioria do grupo da Fanfarrada percebo que espaços como como a cantina Zé Ferreira (Juazeiro) ou o bar do Naldinho (Crato), poderiam nos acolher por serem lugares de encontro do povo jovem da cidade, universitário (URCA- Universidade Regional do Cariri) e que me pareceu super aberto a novidades artísticas.

Vou pro Crato

Acervo do museu da ONG Beatos

 O interesse pela região era antigo e ao escutar músicas como “Eu vou pro Crato” pude entender melhor a relação de proximidade de Luiz Gonzaga com aquela cidade. Frases como: “... tomar banho de nascente na subida do lameiro tomo uns trago de aguardente...” passaram a fazer todo sentido depois desta viagem até porque inusitadamente acabei hospedado em uma casa no bairro do Lameiro, graças ao amigo Thiago Queiroz, saxofonista que além do nome,  teve em comum o desejo de alongar sua estadia no Cariri. 

O espírito do museu

Agradeço aqui mais uma vez a Dani da ONG Beatos que além de nos acolher em sua casa nos apresentou seu museu de tradições e valores culturais do Cariri. Em pouco tempo foi possível perceber a consistência de seu trabalho a favor da cultura local.


Respeita os Oito Baixos


Uma das apresentações que pudemos assistir na programação desta 17°mostra Cariri foi a de um sanfoneiro de oito baixos impressionante. Sr Chico Paes! A correria de tocar, deixar os instrumentos no hotel (onde ficamos hospedados no início) voltar para Juazeiro e depois ir para o largo da RFSA, no Crato, fez com que chegássemos já no fim de sua apresentação e curtíssemos apenas duas músicas e um acalorado pedido de bis, atendido com vigor para um senhor de noventa anos. Quem estava dividindo o palco com o Sr Chico Paes era Guilherme Mará, que eu já conhecia aqui do Rio. Posso dizer que de certa forma sempre acompanhei o trabalho de Mará através do Forróçacana, vez ou outra esbarrava com ele pelo bairro das laranjeiras aqui no Rio, mas nunca tive a oportunidade de trocar uma ideia com o cara. Vê-lo ali produzindo aquele senhor, farto de arte, com ares de utilidade pública me fez admirá-lo ainda mais, mesmo sem ainda ter tido uma prosa com o cara. Após a apresentação fomos conversar com Mará e Mirele sua esposa. Thiagô (como de fato é conhecido o Thiago Queiroz, a lenda carnavalesca) já os conhecia há muito tempo e isto foi importante para ali naquele momento definirmos o roteiro de um passeio pelo sertão do Cariri. Cariocamente, ou seja sem compromisso, cogitamos a possibilidade de ir a Nova Olinda na casa do Sr Espedito Seleiro, celebridade do mundo Cariri, famoso por seus trabalhos em couro e na sequência aproveitar para visitar mestre Chico Paes em Assaré, terra de outro grande mestre: O Patativa do Assaré.
 Alugamos um carro e no primeiro dia eu e Thiagô fomos à Barbalha, município próximo de juazeiro que fica na direção da serra do Araripe onde conhecemos o distrito de Caldas. Para não perder o hábito, decidi por aproveitar a oportunidade e visitar a unidade de produção da “Kariri com K”.

A Kariri com K

Na distribuição da Kariri com K
 Antes de ir ao Cariri já tinha estudado a tradição da produção canavieira na região. Historicamente a região sempre produziu cachaça porém com o processos de industrialização da década de cinquenta do século passado, os alambiques deram lugar às usinas. Os dois estados do nordeste que mais “industrializaram” sua produção de cachaça foram Pernambuco e Ceará e ainda hoje as duas maiores marcas de cachaça do nordeste ilustram a força desta industrialização: Ypióca-CE, Pitu- PE.

Em meio aos tonéis de Freijó da Kariri com K
A experiência na visita a alambiques faz com que já esperemos um cenário mais ou menos previsível em relação a uma unidade produtora de cachaça. A entrada geralmente uma porteira, já no caminho um canavial e ao fim a destilaria que pode ou não ficar próximo à sede da fazenda, ou escritório. Pois bem, no caso da “Kariri com K” na unidade de Barbalha o que vimos foi apenas o escritório. Eu e Thiagô fomos muito bem recebidos por um casal de funcionários. O rapaz contou-nos sua trajetória na empresa que ali naquele lugar era na verdade uma unidade padronizadora, engarrafadora e distribuidora de cachaça. Alambicar mesmo isto eles não faziam. Mas como a cachaça surgia ali? A cachaça vem de Pernambuco (fica realmente muito próximo) e ali é engarrafada. Perguntei de que cidade vinha a cachaça e o funcionário não soube responder. Resumindo: a kariri com K, pelo menos aquela de Barbalha que é a sede da empresa, é produzida em Pernambuco. Trata-se de uma cachaça de coluna muito antiga na região e que é distribuída para todo o nordeste, Rio de Janeiro e São Paulo.
Ao que sei atualmente a região produtora de cachaça de alambique do Ceará fica ao norte, na serra de Ibiapaba  e em municípios como Viçosa e Carnaubal. É o rumo do Piauí. Lá se produzem cachaças de alambique mais conhecidas como a “Rapariga” ou a “Guaramiranga” mas também produzem cachaça de alambiques sem registro. O que aqui no sudeste alguns chamam genericamente de “Cachaça de Minas” para designar a cachaça de alambique, no norte do Ceará eles chamam de cachaça da “Serra” ou simplesmente “Serrana”. Fica a dica.


Até o fechamento desta postagem tive conhecimento de um curso de produção canavieira no CENTEC de Barbalha (Instituto de ensinotecnológico) mas não obtive maiores informações de como está o projeto que foi construído com o intuito de reestabelecer a cultura canavieira na região. Oxalá tenhamos novidade no mundo da cachaça do Cariri. 


Após esta visita, rumamos para o Balneário de Caldas ainda em Barbalha. Uma área de mata atlântica muito bem preservada, com várias espécies de árvores identificadas e com uma nascente que intitulam a mais pura da região nordeste, além de algumas piscinas. A nascente fica em uma gruta e lembra a pureza das águas de São Lourenço- MG, com uma diferença: você pode banhar-se em suas águas. Lugar recomendadíssimo para os que forem no roteiro Juazeiro/Crato/Barbalha (Crajuba). Para quem gosta de árvores como eu, é uma oportunidade de ver exemplares como : “Frei Jorge”, também conhecido como Freijó madeira muito utilizada para armazenamento de cachaça no nordeste,  o Pau Branco, o  Louro e o Gitó. A estrutura e a organização do parque são um show a parte.


Assaré

No dia seguinte, já cedo partimos em comitiva para Assaré, eu, Thiagô, Mará, Mirele e Flor, a filha do casal. Mará na direção junto de sua esposa apresentava os lugares e compartilhava conosco a fantástica experiência de largar tudo no Rio de Janeiro e rumar para o nordeste levando a própria mudança em um Santana Quantum. Os desafios, o encantamento com a tranquilidade da população, as dificuldades e as mudanças do Rio de janeiro dos últimos anos e a força da política nas relações do interior nordestino.  Tivemos tempo até de escutar do casal o relato da dificuldade de manter uma dieta sem carne no nordeste.
Na verdade o que percebi é que os cariocas possuem muito da cultura nordestina a partir dos nordestinos. O meu caso é um exemplo, sou filho de maranhenses, possuo uma identificação com a cultura nordestina muito grande mas o que conhecemos do nordeste é ainda algo muito superficial porque na maioria dos casos estamos no nordeste por pequenos períodos e nosso aprofundamento sobre a região nunca é muito grande pois a referência de tempo, distância e mesmo outros valores, estão ligados a cidade grande e seu ritmo (no caso o sudeste). Minha identificação com Mará foi grande por perceber nele o interesse de ser um pouco o nordeste, muito mais do que estar no nordeste. Percebi o prazer dele em falar das cidades daquela região com se já fosse de lá e vez ou outra apresentava um lugar a partir de uma música, como se essa fosse o veículo e razão de estar ali. Pareceu-me a história de uma pessoa que gosta de música flamenca e vai morar no sul da Espanha, gosta de artes marciais e vai para o Japão. No caso dele o forró o levou para o Cariri.
Antes de chegarmos na casa do Sr Chico Paes  Mará explicou a relação que tem criado com o artista e o interesse de promover a obra do Sanfoneiro. Mará produziu o trabalho de outro grande poeta da Oito Baixos: Zé Calixto, este último residindo aqui no Rio. Foi muito rico perceber a história que têm construído com a Oito Baixos e seus representantes.




“Anima minha gente que chegou o sanfoneiro”

Chegamos na casa de Chico Paes, a esposa nos acolhe em uma sala simples que estampa com orgulho banners e painéis do artista da casa que não se encontrava naquele momento. Na sala  Mará começa a tocar sua oito baixos. Pego um Cavaquinho que Mará levara e começo a acompanhá-lo, em pouco tempo já estávamos mais próximos, desta vez fazendo música. Minutos depois chega Chico Paes na garupa de uma moto. Imagina, um senhor de noventa anos na garupa de uma moto! Sr Chico impressiona pela vitalidade e lucidez. A partir dali a conversa passou a ser o último show que fizera no Crato, seu retorno para Assaré e os planos. Fomos para o interior da casa, para a cozinha. Lembrei da casa de minha avó, onde a cozinha era sempre mais acolhedora que a sala. Mais um pouco vamos para a área no fundo da casa, quando seu Chico começa a tocar. Minha cabeça naquele momento vira um turbilhão de sentimentos. A agilidade de Sr Chico com o instrumento, a cena dele sentado na rede, remeteu-me a referências nordestinas como os senhores lá do Maranhão (Tio Joaquim no Brejo ou Tio Alcir em Codó).  Posso dizer que “levamos um som” com Sr Chico Paes que também é bom de prosa. Pergunto-lhe se chegou a conhecer o velho Januário (pai de Luiz Gonzaga). Diz que não, mas que seu pai sim e falava muito bem dele. “...O cabra era bom mesmo...”. Pergunto a Sr Chico se ainda compõe e ele mostra o “Rasga lata”, música que têm desenvolvido nos últimos dias.




 Sr Chico aprendera a tocar ainda criança, com o pai. Percebi que as relações de aprendizado da Oito Baixos se davam em outro momento a partir de laços familiares e que este instrumento apresentava a forma como os antigos se divertiam. Durante o dia: roça, vaqueiro, no fim do dia sanfoneiro. Além de Zé Calixto, Luiz Gonzaga e Januário outros sanfoneiros foram citados como Dominguinhos e por mais longe que estivesse: Borguetinho!

Do sul para o norte


Sempre fui fã de Borguetinho. A opção de fazer música instrumental regional o faz referência para muitos artistas e destes, talvez eu seja um. Até hoje também não encontrei alguém que falasse mal do indivíduo, e ali a quase três mil quilômetros de distância vi o quão longe pode chegar a generosidade de uma pessoa. Mará nos conta que em um determinado momento fizeram uma campanha para comprar um novo instrumento para Chico Paes. Diz que esta campanha tomou proporções tão grandes que chegou ao conhecimento de Borghetinho que enviou um instrumento para o sanfoneiro nordestino. Quando vi o instrumento me emocionei.
Abrindo um apêndice, no filme “ A linha fria do horizonte” dirigido por Luciano Coelho, artistas e pensadores  defendem o Pampa, como uma região autêntica com estética própria que muitas das vezes não é representada pela grande mídia. Eu, Thiago Pires convido qualquer cineasta interessado  a produzir “ A linha quente do Horizonte” porque a Caatinga, é outro lugar que não é representado pela grande mídia brasileira. Resquícios de valores ultrapassados da Europa associaram o calor à pobreza, como se menos oferta d’agua na caatinga fosse desequilíbrio, como se o bioma dos espinhos e cactos não fosse vivo. Essa cultura ultrapassada só não conseguiu falar mal das pessoas e do céu porque estes são inquestionavelmente belos. Total desconhecimento da Caatinga! A estética da Caatinga é própria ainda que menos presente no imaginário de muitos brasileiros. Isto acontece com a região norte também quando escutamos o termo  “Amazônia” de forma tão abrangente que muitas vezes não significa nada.



Quando vi a sanfoninha de Borguetinho, rústica, com um belíssimo trabalho de entalhe na madeira senti o sul muito próximo. O sul do amigo Moraes. Gaúcho de Arroio Grande- RS, e responsável por me apresentar, a partir da música, uma perspectiva muito interessante sobre a cultura campeira, nativista, criola. A relação com o cavalo Criolo no trabalho com o gado é uma temática recorrente na vida do gaúcho e junto disso aparecem tantos outros símbolos como as pajeadas, o mate e o couro. Conheci a obra do poeta Jaime Caetano Braun e encantei-me tanto que batizei minha experiência com cachaça em Saquarema – RJ, de “Tio Anastácio”, referência ao mítico personagem do poeta gaúcho.
A ponte que ligava o sul ao norte estava ali, concreta. A cultura do vaqueiro, o chapéu de couro e o chapéu campeiro, a gaita de ponto e a oito baixos estavam lado a lado como se a distância física fosse
um mero detalhe.

Um pouco de História


O Ceará é um estado que se constituiu a partir da cultura do vaqueiro. Os vaqueiros foram responsáveis por descobrir outras rotas de interiorização do Brasil e este êxodo dos vaqueiros na caatinga começa na Bahia e atravessa pelo interior do nordeste até o Piauí. É importante lembrar que o interior do Maranhão também absorveu bastante desta cultura principalmente perto do Parnaíba, porém quanto mais a oeste do Maranhão, mais encontramos a influência indígena da região norte, com a cultura da pesca e da extração. Traçar um elo entre o sul e o nordeste a partir da cultura do gado não é nada difícil e a Oito Baixos é um exemplo. Porque no sul durante muito tempo a rotina também foi essa: na manhã peão, gaudério, ginete, a noite sanfoneiro.
Há muito tempo já traçava relações entre os versos de Jaime Caetano Braun com o universo rural de Patativa do Assaré. Posso afirmar que é muito fácil achar similaridades no mundo rural descrito por ambos. Um falando do Pampa, o outro da Caatinga. Um no sul, outro no nordeste.
Saí da casa de Chico Paes alimentado de Oito baixos, sabendo um pouquinho mais de “Onde vem o Baião” até porque estávamos a menos de cinquenta quilômetros de Exu, cidade de Luiz Gonzaga.
Após um delicioso almoço caseiro seguimos viagem. Encontrar Sr Chico Paes foi um imenso aprendizado do ponto de vista musical, humano, geográfico e porque não dizer: sensorial. Marcante!

O Museu de Patativa

Placa numa rua de Assaré


Visitamos o museu dedicado a Patativa do Assaré. Já tinha lido muitos poemas do “Cante lá que eu Canto cá” ed. Vozes e já conhecia uma pitada de sua obra. O que me impressionou bastante foram depoimentos de que Patativa era capaz de elaborar um poema para uma pessoa, ficar muito tempo sem vê-la e ainda assim recordar-se do poema original, tudo de cabeça. Impressionante. No museu é possível comprar cds e livros também. Chamo atenção que em muitas esquinas da cidade de Assaré encontramos placas de identificação da rua com poemas de Patativa. É bom quando topamos com arte em cada esquina literalmente.

O Seleiro de lampião

 Nossa penúltima parada: Nova Olinda. Já tinha visitado esta cidade no terceiro dia de viagem com mais três companheiros de fanfarra. Na oportunidade fomos de van e estávamos reféns do tempo. Fomos à loja de Sr Espedito Seleiro que lá não estava. Nesta segunda ida, o artesão se encontrava com a família na calçada em frente a loja, a oficina funcionando e tudo com um ar mais “vivo” do que na primeira vez. Mará nos apresenta e começa a tocar na calçada, como se aquela sanfona fosse um cartão de visita, um presente.
Conversei com Espedito Seleiro. Procurava um chapéu de vaqueiro de aba larga. O que ele tinha lá  só tinha três dedos de aba. Ele me disse: “...moço já fiz muito disso aqui  mas agora não tenho não...” A partir dali começamos um bate papo em que não tive como não lembrar de meu avô, o velho Miro, esse gostava de contar história! Espedito tinha acabado de mandar um material para ser cenário do programa de Regina Casé. Disse que após o término do aluguel do material a atriz global comprou tudo. Comentei com ele: “..que bom que no final o senhor ainda saiu no lucro, como diz o ditado : O bom vaqueiro não perde a viagem” ao que ele me corrige: “ O bom vaqueiro não perde a corrida”. Conversamos sobre outros assuntos, conversamos até sobre Cachaça. Dissera que até hoje guarda uma garrafa de cachaça armazenada na imburana (Amburana Cearensis).

Capa da Sanfona de Chico Paes

 Cachaça de alambique que um amigo tinha lhe presenteado. Hoje segundo ele, os engenhos e os vaqueiros são poucos, mas existem.  Falamos sobre ciganos, sobre cobre. Explicou-me que a roupa de couro faz muito sentido para o vaqueiro pois ainda que ele se molhe e pegue sol no fim do dia sabe como cuidar da roupa. “...outro deixaria jogado e no dia seguinte não conseguiria entrar na roupa, de tão dura...” É isso mesmo, o couro endurece e o carinho com um pouco de banha, ajudam a suavizar e amolecer a pele.
Contou como seu pai tinha recebido a encomenda de elaborar uma alpargata para  o Coronel Virgulino, o Lampião, e sobre o pagamento em forma de uma Adaga “deste tamanho”  fala ele demonstrando com as mãos. 
 Na hora de ir,  Sr Espedito de uma forma muito comum às pessoas do interior fala: “...vê se vocês aparecem de novo...”.
Imagem no museu do couro ao lado da Casa de Espedito Seleiro
universo gaudério e cabloco unidos pelo couro


O trabalho de Espedito Seleiro é uma referência na arte em couro e a estética de seu trabalho traz o nordeste em cada entalhe, alto e baixo relevo. É recomendadíssimo conhecer sua oficina.
Ainda neste dia encerramos nosso estirão na fundação Casa Grande, outro lugar especial.

Fundação Casa Grande


Trata-se  de uma ONG fundada em 1992 que oferece atividades de complementação escolar através de seus laboratórios de conteúdo e produção. Objetivando a interdisciplinaridade, atuam na formação crítica dos jovens a partir da sensibilização pela arte.
Já tinha indo lá da primeira vez que estive em Nova Olinda. A produção da mostra incluiu o teatro existente na fundação como um palco para apresentação de companhias de teatro. O interessante é que os jovens da fundação montam o palco, pilotam o som, cuidam da iluminação e da parte da montagem do cenário. Enfim, surpreende ver uma galera de quinze anos ou até menos com este tipo de conhecimento de forma atuante. Quando vemos as fotos das celebridades que já visitaram a Fundação Casa Grande podemos perceber que aquele ali é um espaço obrigatório no roteiro de viagem principalmente de quem trabalha  com arte, cultura e educação. Na segunda ida, desta vez com Mará e família, encontramos com o pessoal da carroça de mamulengos e uma garotada animadíssima compartilhando brincadeiras e jogos coletivos. Quem brincou no fim das contas foi eu.

E Valeu o Boi

O Cariri é uma região que respira cultura. A cultura da Caatinga, do Cangaço, de manifestações como o reisado e os bacamarteiros. Para quem gosta de turismo cultural é um lugar indispensável para discutir a cultura nordestina. Para quem gosta de belezas naturais a região também oferece atrativos como  Geo Parques (não visitei) e outros cenários que ficam sempre mágicos com o pôr do sol daquela terra quente.
Encerro esta postagem agradecendo em nome da Fanfarrada à produção do Sesc Ceará, principalmente Chagas (Chagas Sales Nogueira Lima) e toda a equipe do Sesc. Agradeço também a  Thiagô, Geraldo Jr, Dani da Beatos, Mará, Mirele e Estrela.

  Esta Postagem é dedicada a meu Tio avô Alcir Campello (1928- 2015), meu elo familiar com os foles, e ao Sanfoneiro pernambucano Camarão (1940-2015).





terça-feira, 4 de agosto de 2015

"Tropeando" no Vale do Paraíba/Café

A divisão cultural segue outras lógicas quando comparamos com a divisão política dos territórios. O vale de um rio, uma chapada, um delta, são culturalmente mais abrangentes e fazem com que não sejamos capazes de delimitar onde começa ou termina um evento folclórico/cultural. Assim é com os sotaques, hábitos, brincadeiras de infância...
O vale do rio Paraíba do Sul contempla municípios e distritos distribuídos pelos estados de Minas Gerais, Rio de Janeiro e São Paulo. Se não bastasse o vale deste rio, temos ainda a Serra da Bocaina (São Paulo e Rio) e a Serra da Mantiqueira como elementos aglutinadores de uma cultura que ora é caipira/caiçara ora tropeira, ora uma mistura disto tudo. Temos as referências “menores” como leitos de afluentes e rios vicinais (Piabanha, Parapeúna, Rio Preto, Rio das Flores) ou a Serra Negra e a Serra do Funil.
  Esta apresentação toda é para defender a cultura tropeira, caipira/caiçara presente também no estado do Rio de Janeiro, mas que como outras culturas presentes no interior do estado perdeu o foco para manifestações atreladas à metrópole do Rio de Janeiro, que já foi capital do Estado do Brasil (1621-1815), colônia do Império português (1763 a 1815), capital da república dos estados unidos do Brasil de 1889 a 1960 quando da criação de Brasília. Guardadas as devidas proporções, é como se as comitivas, tropeadas/ muladas fossem as empresas de logística que distribuíam os diversos do interior. Chamo atenção o fato destes serem ainda ativos e especialmente aqui no estado do Rio de Janeiro estarem por exemplo responsáveis pela distribuição de boa parte do "Parmezão da Mantiqueira" que se come em Maromba, Mauá, Maringá de Minas e Rio. Aos que tiverem maior interesse vale a pena dar um confere neste vídeo https://www.youtube.com/watch?v=83H-EFspvzY 
Armazém Em Mont Serrart

  Seguindo caminho, aqui vai um resumo de uma viagem etílica que é dividida em duas partes. Rio x Juiz de Fora (MG), e em um outro momento Juiz de Fora x Rio das Flores, Valença x Rio Preto (MG)x Serra do Funil (MG).
Como estas localidades  estão muito próximas entre si é difícil delimitar onde termina o Rio de Janeiro e onde começa Minas, principalmente quando se passa por distritos como: Montserrart, Afonso Arinos, Manuel Duarte (todos distritos entre Levi Gasparian e Rio das Flores inseridos em antigas rotas da Estrada Real).
  
Rio x Juiz de fora/  Tradição Mineira

Em 13 de junho acompanhei a Confraria de Cachaça Copo Furado ao alambique da Tradição Mineira. Foi um ótimo reencontro com a Marlene (proprietária, alambiqueira) que falou um pouco sobre cooperativismo  e o desafio que é a organização das cachaças de Juiz de Fora e Zona da Mata mineira em torno de uma cooperativa.

Tonéis de Castanheira da Tradição Mineira
Além de nos apresentar as instalações e falar de sua rotina quando do período de destilação, Marlene e Bené (o esposo) conduziram a degustação de seus produtos. Saí do alambique com a confirmação do que suspeitava. A cachaça Tradição Mineira armazenada em tonéis de castanheira é simplesmente muito acima da média.  Este exemplar atesta que a castanheira é madeira que dia após dia conquista mais público a partir de alambiques como Flor do Vale- RS, Lira-PI, Sudoeste- PR. Mesmo com a prata e o carvalho sendo muito bons, a castanheira destoa positivamente por conferir autenticidade à linha de produtos deste alambique. Super recomendável! A outra confirmação que tive é de que o casal Bené e Marlene são pessoas simples e acolhedoras que sabem como ninguém unir a descontração (comum entre os cariocas) com a discrição (típicas dos mineiros) e que talvez aí tenhamos um pouco do que é a relação destas cidades tão próximas e afins (Rio/Juiz de Fora).







A Werneck



 Em 22 de julho segui, acompanhado do amigo e sócio Moraes, a rota da BR 040 com o objetivo de conhecer os alambiques das cachaças Werneck (Rio das Flores) e Santa Rosa (Valença) com destino final no Vale do Funil, vilarejo de Rio Preto- MG.  A escolha da Werneck foi por dois motivos: primeiro o fato de saber previamente que o projeto do alambique une-se ao da casa, tendo uma casa alambique ou alambique casa, únicos. O segundo motivo o posicionamento da Werneck como uma das melhores cachaças do Brasil apesar do pouco tempo de existência       (quase dez anos).
Do primeiro contato a concretização da visita, o proprietário Eli Werneck foi uma gentileza só. Elaborou a rota mais segura com todas as curvas e porteiras como ícones permitindo nossa chegada rápida e tranquila.
Organização padrão Werneck
O lugar é calmo como um lar deve ser e alguns detalhes demostram o carinho e cuidado do casal Werneck com tudo que os rodeia. Da “Brisa” na porta da casa (uma cadela Labrador) às pantufas que pede que calcemos para andar no alambique, nota-se zelo com o que se faz. A moagem fica bem distante da fermentação e o caldo chega às dornas através de canos que percorrem um trajeto razoável. Fermento selecionado, destiladores  Santa Efigênia, planilhas de relatório para cada destilação e muitas bombas elétricas  de transporte do destilado para diferentes momentos da produção(padronização, engarrafamento). Isso é só um pouco dos equipamentos que vemos. Chamo atenção ao cuidado que o Werneck possui com a água que utiliza para a padronização de seu produto. Filtros de todos os tipos (carvão ativado, resina Cátion/íon, deionizador de água e filtro por raios ultra-violeta). O padrão “Nasa” não é à toa já que a Werneck têm sido exportada para os Estados Unidos.
 Para quem pensa que não há stress,  Eli Werneck deixa claro como alguns procedimentos de regulamentação da cachaça  se mostram morosos e burocráticos como licenças e autorizações. Sobrou até para o selo do IPI que segundo ele seria bem mais prático se  fosse destacável e auto-colante e para os fornecedores de embalagens que tiram garrafas de catálogo sem considerar quantos produtores já possuem sua imagem atribuída à um modelo de garrafa.  Fica a sugestão de quem é produtor, alambiqueiro, vendedor, distribuidor...Eli Werneck joga nas onze posições com habilidade.
 Depois de degustar a branca (inox), o Jequitibá (minha predileta), o carvalho  e a Safira Régia conversamos sobre as novidades da Werneck. Vale o confere no vídeo onde no final ainda fico sabendo das visitas ilustres no campo da música ao alambique Werneck.
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A Santa Rosa



  A Santa Rosa é uma cachaça que junto da Chacrinha conta a história do município de Valença. Bem perto de Rio das Flores, foi muito fácil chegar no alambique embora não tivéssemos certeza se de fato conseguiríamos conhecer as instalações já que os contatos  do início da semana não conseguiam ser confirmados. Fomos atendidos por Fabiana que teve que dividir sua atenção com uma visita de família.  Aliás o clima familiar pôde ser percebido pelas crianças brincando na porta da propriedade e pela reunião de pessoas em torno de uma mesa que entendi ser a cozinha da família. Não conseguimos ter maiores informações da fazenda e neste sentido Fabiana se desculpou dizendo que não têm aberto para visitações pois estão trabalhando na restauração de algumas instalações da propriedade.
Tinham alambicado no dia anterior e o cheiro doce do fermento podia ser percebido fora da sala de fermentação. A roda d’agua junto a muita cana denunciava o tamanho do alambique. Trata-se de um alambique muito antigo e grande.
 As dornas de fermentação ativas e de aço inox com um fermento caipira à base de fubá, bem vigoroso. O destilador chama atenção por ser de cobre com uma panela que parece ou de inox ou de cobre estanhado. Um formato bem peculiar se compararmos com o que temos visto ultimamente. A serpentina, de aço inox. A adega, muito grande dividida ente tonéis de jequitibá e barris de carvalho de diferentes aparências e procedências (francês, escocês, americano). Um funcionário muito tímido, responsável pela moagem,  acompanhou nossa investida em meio aos barris e mesmo assim não conseguimos achar as imburanas. Mais algumas fotos, mas a impressão de que aquela visita poderia ser mais pessoal. Gostaria de ter conversado mais com os produtores/proprietários, e posso não ter dado sorte.
Exemplares do escritório da SR. A história nos rótulos
 É bom lembrar que a Santa Rosa é uma jóia, orgulho para a cidade. Tenho alguns exemplares guardados pois esta cachaça teve muita alteração de sabor de uns dez anos pra cá. Lembro ainda hoje quando o confrade Gilvan Chegure apresentou-a certa feita como sua cachaça de cabeceira(direto do túnel do tempo!). Na oportunidade a degustação feita em copo de Uísque, trazia ao olfato um cheiro de cana frutado e ao mesmo tempo amendoado muito agradável e sutil. Virei fã e com isso fui percebendo a mudança do produto, que para mim tem, em uma versão de 1litro com a apresentação  em garrafa “Cachaça do Brasil” com tampa verde, uma das melhores versões.
Infelizmente da linha de seis diferentes cachaças (Essence, Intense, Special, Splendid, Royal, Exclusive) só degustamos a Essence que adquiri. Ótima cachaça a preço honesto.
Daí, rumamos para Rio Preto-MG.

 No caminho de Valença a Rio Preto passamos por Pentagna e Parapeúna. Passamos na porta da fazenda Bela Vista onde o querido Rogério Ramos recebeu-me já por duas vezes. Muito bom ver a mesma plaquinha da fazenda. No centro de Parapeúna adquiri duas garrafas que o Rogério deixara ainda naquele dia.

A cachaça Tiririca

  Chegamos à comunidade do Funil à noite. O  acesso ao local é sinalizado por placas de pousadas que ao mesmo tempo vão indicando a  distância. A subida em estrada de barro requer tranquilidade e um carro alto. O “Land Roça” (minha Paraty 94) subiu numa boa salvo a zoada da correia do alternador que sempre chia com muita poeira. Neste dia eu e Moraes só queríamos comer e dormir, e foi isso que fizemos.
O dia seguinte (uma sexta) fora reservado para o descanço. Queria conhecer as belezas da Serra do Funil de que já tinha ouvido falar. Rio Preto é dividido de Lima Duarte e Ibitipoca por uma serra, ou seja conhecemos o outro lado de Ibitipoca. E que lado! As opções de cachoeiras são várias e em solidariedade ao joelho de Moraes resolvemos trocar a visita à cachoeira vermelha pela visita ao alambique do Sr José Roque, também conhecido como José do Sítio Tiririca. Fabrício, funcionário da pousada onde estávamos hospedados ao nos ver tocar sanfona e violão nos disse: “...vocês precisam conhecer meu sogro...”. Oito Km de carro em uma estrada tranquila que lembra muito os acessos de Lima Duarte à Ibitipoca.

  O Sr josé Roque é um raro exemplar de pessoa que montou o alambique de curioso e engenhoso que é. Produz hortaliças,mel, queijo, milho, cana, cachaça e fubá. Um exemplo . O milho e o fubá são processados em engenhos movidos à roda d’agua. O mesmo mecanismo que gira a moenda de cana, gira a mó de fubá. Conversei muito com Sr josé Roque sobre o alambique que ele foi me mostrando meticulosamente. Trocamos receita de fermento e percebi prontamente que Sr Tiririca fermenta sem utilizar sacarímetro e destila sem termômetro na panela, algo cada vez mais raro e que cobra mais atenção e habilidade do alambiqueiro. Contara que ele mesmo tinha diminuído o tamanho da panela do destilador para que pudesse fazer um produto com mais controle e maior qualidade. Ele mesmo fizera o forno e adaptara a serpentina.
Alambique montado por Sr Tiririca 
Sua cachaça impressiona pelo cheiro doce que ora lembra milho, ora cana e mesmo a branca é curiosamente muito suave.
Mó ou moinho de Fubá movido a água

 Depois de trocar muitas informações na cachaça, fomos trocar na música. Sr José Roque possui uma oitenta baixos (acordeom) e já foi responsável por "segurar" a sanfona de algumas folias de reis da serra do funil um baile facilmente. Tive ali uma manhã memorável. Água em fartura , queijo fresco, boa prosa e a vontade de voltar para conhecer tudo o que não conheci da serra do funil. Percebi que  o gosto de conhecer cachaças acompanha o gosto por conhecer as pessoas que fazem  a cachaça. Suas histórias e suas trajetórias. 
Identificação com Sr Tiririca: Cachaça e Música
Agradeço à toda a comunidade do Vale do Funil, em especial Cristiano da Pousada Mirante Santo Antônio. Ao amigo Moraes, gaudério inconfundívele ótima companhia de viagem e violão.
 Dedico este poema à todos os produtores de cachaça em especial à Eli Werneck, e Sr José Roque que me mostraram que nos extremos de dois alambiques totalmente diferentes se encontra algo em comum: o amor pela terra, a paixão por ver a mesma produzir e o carinho pela cachaça. Muito obrigado mestres.

“Fazemos cachaça quase que por vício
Dinheiro que é bom é coisa difícil,
Riqueza maior são os amigos.
Mas se a fé é um firme artifício,
Continuamos  acreditando
Mesmo com o tempo passando
Como se hoje fora só o início”

  Thiago Pires

quarta-feira, 17 de junho de 2015

O Caipira Revisitado


Esse blog é como cachaça artesanal. É feito com muito carinho para a família e os mais chegados e o produtor não é um mega empresário. É um artista que se dividindo nas funções  de músico, professor, produtor de música e cachaça e pesquisador, de música e cachaça sim senhor, tenta manter viva a chama destes dois símbolos: A música Brasileira e a Cachaça. Estou devendo postagens sei disso, mas enquanto não atualizo com minha próprias palavras os pratos deste cardápio, compartilho esse texto do Edilson Chaves para a revista "Carta Fundamental". É um texto dirigido para professores abordando a possibilidade e necessidade de se trabalhar a cultura caipira em sala de aula. De qualquer forma é uma ótima apresentação de questões que precisam ser refletidas não apenas pelos pequenos de sala de aula (é uma revista direcionada a professores de ensino fundamental) mas na verdade por toda a nossa sociedade. Alem de tudo acaba sendo uma breve homenagem a grande Inesita Barroso. Se escutar é uma arte, ler é escutar com os olhos.

Por Edilson Chaves*
Uma das maiores pesquisadoras da música brasileira caipira do Brasil, Inezita Barroso, morta aos 90 anos em março de 2015, afirmava que, ao longo dos anos, a figura do caipira foi sendo desvalorizada e que seu resgate se nos filmes de Amácio Mazzaropi, por meio do seu personagem Jeca Tatu.  Embora nascida na capital paulista, Inezita dedicou toda sua vida às coisas do interior. Na infância, teve contato com o folclore brasileiro e tradições como Folia de Reis, a catira e o cururu. 
A exemplo dos Irmãos Jacob e Wilhelm Grimm, que no século XIX viajaram pelo interior da Alemanha recolhendo depoimentos sobre histórias camponesas, nas décadas de 50 e 60 do século XX a cantora e pesquisadora viajou pelo Brasil pesquisando, recolhendo relatos presenciais em documentos antigos e registrando contos populares. Dessa forma, tornou possível a preservação da memória da canção brasileira de raiz, com seus ritmos, melodias e letras, construindo um valioso mapa da música caipira e do folclore brasileiro. 
Uma das músicas gravada por ela e que se transformou em sucesso foi “Marvada Pinga”. Segundo Inezita, a música era de domínio público e possuía ao menos sete versões, outras fontes, porém apontam a composição como de Ochelsis Laureano. Para a pesquisadora, isso era a essência do caipira, ou seja, de tempos em tempos alguém ampliava ou modificava a letra da música conforme lhe convinha. 
“Leilão”, de Heckel Tavares e Joracy Camargo, outra música gravada por Inezita, possibilita um outro olhar sobre o passado brasileiro. A canção retrata cenas coloniais como a chegada dos africanos escravizados ao Brasil, destacando suas intensas lembranças da África e as condições de vida no cativeiro. A música, na voz de timbre tão característico de Inezita, em tom de melancolia, possibilita o enriquecimento da alma. Uma obra de arte. 
Inezita, por quase quatro décadas esteve à frente de um dos programas de maior audiência da TV brasileira, o “Viola, minha viola”. Esse sucesso pode ser tomado como evidência do espaço que a cultura caipira e em especial a música de raiz ocupam na cultura brasileira contemporânea. Deve-se destacar que o programa, além de sua função de entretenimento, tornou-se uma das maiores fontes para pesquisadores do gênero, por apresentar antigas e novas gerações de compositores e intérpretes que contribuíram e contribuem com a preservação da autêntica música caipira. 
Inezita afirmava sempre que o mundo caipira era um “mundo machista”, no entanto, outras mulheres tiveram o mesmo êxito que Inezita. É o caso das irmãs Mary e Marilene, conhecidas como “As Galvão” que completam, em 2015, 68 anos de carreira. A dupla, incentivada pelo pai, sofreu preconceito pelo resto da família. Começaram cantando ainda crianças mas o espaço no rádio que foi diminuindo na medida em que se tornavam adultas, por puro preconceito.
No universo caipira, abraçado muito cedo, somente elas e Inezita Barroso resistiram ao tempo, às imposições e ao machismo. Para provar que podiam competir na música caipira, aprenderam, além do violão e sanfona, a tocar viola e dançar catira. Nenhuma outra dupla feminina conseguiu tamanho sucesso. Foram pioneiras ao viajarem pelo interior do Brasil e a cantar em circos, espaço das duplas masculinas. Entre seus sucessos estão “Beijinho Doce (Nhô Pai)”, “Viola sem defeito”, de Athos Campos, e “No calor dos teus abraços” (Niceas Drumont/Cecilio Nena).
Música caipira: do que é que estamos falando 
Para se compreender a música caipira como elemento da cultura nacional é preciso relembrar que, na década de 1920, surgiram no Brasil estudos de resgate dessa cultura. A partir dessa década, surgiram as primeiras canções caipiras gravadas em disco, como a célebre “Tristeza do Jeca”, composta por Angelino de Oliveira em 1918 e gravada em 1923. 
Mas será com Cornélio Pires e sua Turma que esse gênero musical entrará na indústria cultural. O primeiro passou a se apresentar pelo interior paulista fazendo shows e gravando seu primeiro disco em 1929. Em 1931, tocou no Teatro Municipal de São Paulo alcançando o reconhecimento do público. Esse foi um período de transformação na história da música caipira, pois a partir daí as canções foram apropriadas pela indústria cultural e entraram para o universo da cultura de massa. 
Esse momento marca, portanto, a transição da música caipira composta e cantada pelo homem do campo para outra forma de expressão denominada de música sertaneja, feita na cidade pelo e para o migrante caipira urbanizado. Grandes mudanças passaram a ocorrer na composição das letras: as temáticas que antes tratavam de ritos religiosos, canções de trabalho, ciclos da lavoura, passam a tratar do amor, da nostalgia gerada pela perda do lugar e da cultura de origem. 
A cultura do campo é levada ao homem urbano através dos programas de rádio das grandes cidades, influenciando compositores urbanos como Noel Rosa (“Festa no Céu”, “Minha Viola”, “Mardade Cabocla”), Ary Barroso (“Rancho fundo”) e Lamartine Babo (“Serra da Boa Esperança”), que só mais tarde se tornariam sambistas. 
Mas, se o homem do campo foi para a cidade, a que classe passa a pertencer? Dada a grande migração a partir do período desenvolvimentista de 1950, esses homens passam a fazer parte de diferentes segmentos da classe operária, mas sem esquecer o passado e as origens, como expressa o fragmento da canção “Sodade do tempo véio”, de Sorocabinha, com Mandy e Sorocabinha, de 1939: “É só eu pega na viola, me vem a recordação: o tempo do meu sitinho, que tudo era bom, ai... que tudo era bom. (...) 
  Marcada por uma identidade própria, a música caipira enquanto linguagem expressa conteúdos (modos de pensar e compreender o mundo, de se divertir, de trabalhar, de se relacionar, de viver) de uma cultura que, ao longo da história, foi sendo definida como “subcultura”. Essa linguagem, porém, pode ser utilizada como formadora de um novo conceito a respeito da cultura caipira e do caipira, sendo capaz de destruir alguns mitos, de que se trata de uma “subcultura” da cultura brasileira. 
É relevante destacar algumas obras que contribuíram para a construção de uma representação do mundo do campo (agora chamado “caipira”), no período modernista. Enquanto a maioria dos fotógrafos, literatos e artistas plásticos da Belle Époque brasileira destacavam o desenvolvimento urbano e econômico do país – o que nos proporcionava a condição de “civilizados” – Monteiro Lobato (Urupês, 1918) e Paulo Prado (Retrato do Brasil, 1928) procuram desconstruir essa imagem do País europeizado e acabam mostrando as mazelas da sociedade brasileira. Como o lastro da economia do país, naquelas décadas, vinha sobretudo da agricultura e, em decorrência, havia grande concentração demográfica no espaço rural, ao criticar a mentalidade da elite agrário-exportadora do país, Lobato acabará criando um personagem caricatural do homem do campo, o Jeca Tatu, regenerado posteriormente com o Zé Brasil. 
Assim, desde o início do século XX, há uma vasta produção escrita e iconográfica que associa o campo a ideias de atraso e desqualificação (moral, intelectual, tecnológica). Essa representação negativa e pejorativa da vida e das pessoas do espaço rural permaneceu, e foi contra ela que Inezita Barroso lutou, trabalhando em prol da valorização de uma parte significativa das raízes da cultura brasileira, expressas na música e na cultura caipira.
Embora não seja produzida com finalidade pedagógica, a música caipira pode ser utilizada, pelos professores em aulas de História, Literatura, Geografia e Arte, por exemplo, como fonte a partir da qual os alunos podem se aproximar das formas culturais que identificam determinados grupos sociais, produtores de realidades sociais diversas. 
No caso específico da música caipira, que carrega, assim como outros gêneros, uma gama de metáforas e simbologias, é possível afirmar que pode auxiliar alunos e professores na construção do conhecimento, estimulando a capacidade de análise a partir de comparações de épocas e sociedades diferentes. Também pode contribuir para corrigir ideias preconceituosas naturalizadas ao longo da História brasileira, uma vez que coloca em pauta concepções, sentimentos e opiniões do caipira sobre diferentes temas da vida nacional e da vida humana, em geral, como o trabalho na cidade ou no campo, o amor, a guerra, o tempo e a natureza. 
Ouvir músicas que retratam temas como a mulher, a República, o malandro, o regenerado, a cidade ou o campo é um fato do cotidiano de muitas pessoas, mas nessa circunstância a audição tem finalidade em si mesma – ouve-se música porque se quer, porque se gosta, e não porque é uma fonte de reflexão sobre o tema em questão nas canções. Sabe-se, porém, da importância da música dentro da sociedade, sobretudo das canções que tratam de temáticas fundamentais e que ajudam a construir argumentos ou sentimentos sobre a forma como viveu ou vive um grupo social, uma sociedade. 
Carregadas de materiais simbólicos, contribuem para a compreensão de uma dada realidade e permitem a construção de novas leituras sobre ela. Uma canção pode auxiliar os ouvintes mais atentos a se situar dentro de um contexto histórico, construindo novos significados. Do ponto de vista do ensino, pode servir como fonte para a interpretação de fatos de um determinado tempo, criando argumentos que ajudam a desvendar imagens sobre um povo, sua vida, sua cultura. 
Ressalta-se, portanto, que a inclusão da música caipira nas aulas, pelos professores, poderia ser um valioso elemento para o trabalho de ensino interdisciplinar porque apresenta um caráter narrativo das dificuldades do homem rural na cidade grande, bem como a contraposição dos valores urbanos frente aos do sertão. Além disso, pela riqueza das temáticas abordadas, de forma narrativa, pode abrir inúmeras possibilidades de articulação com diferentes conteúdos escolares. 

*Historiador, é doutor em educação pela UFPR e professor do Instituto Federal do Paraná
http://www.cartafundamental.com.br/single/show/394