quarta-feira, 17 de junho de 2015

O Caipira Revisitado


Esse blog é como cachaça artesanal. É feito com muito carinho para a família e os mais chegados e o produtor não é um mega empresário. É um artista que se dividindo nas funções  de músico, professor, produtor de música e cachaça e pesquisador, de música e cachaça sim senhor, tenta manter viva a chama destes dois símbolos: A música Brasileira e a Cachaça. Estou devendo postagens sei disso, mas enquanto não atualizo com minha próprias palavras os pratos deste cardápio, compartilho esse texto do Edilson Chaves para a revista "Carta Fundamental". É um texto dirigido para professores abordando a possibilidade e necessidade de se trabalhar a cultura caipira em sala de aula. De qualquer forma é uma ótima apresentação de questões que precisam ser refletidas não apenas pelos pequenos de sala de aula (é uma revista direcionada a professores de ensino fundamental) mas na verdade por toda a nossa sociedade. Alem de tudo acaba sendo uma breve homenagem a grande Inesita Barroso. Se escutar é uma arte, ler é escutar com os olhos.

Por Edilson Chaves*
Uma das maiores pesquisadoras da música brasileira caipira do Brasil, Inezita Barroso, morta aos 90 anos em março de 2015, afirmava que, ao longo dos anos, a figura do caipira foi sendo desvalorizada e que seu resgate se nos filmes de Amácio Mazzaropi, por meio do seu personagem Jeca Tatu.  Embora nascida na capital paulista, Inezita dedicou toda sua vida às coisas do interior. Na infância, teve contato com o folclore brasileiro e tradições como Folia de Reis, a catira e o cururu. 
A exemplo dos Irmãos Jacob e Wilhelm Grimm, que no século XIX viajaram pelo interior da Alemanha recolhendo depoimentos sobre histórias camponesas, nas décadas de 50 e 60 do século XX a cantora e pesquisadora viajou pelo Brasil pesquisando, recolhendo relatos presenciais em documentos antigos e registrando contos populares. Dessa forma, tornou possível a preservação da memória da canção brasileira de raiz, com seus ritmos, melodias e letras, construindo um valioso mapa da música caipira e do folclore brasileiro. 
Uma das músicas gravada por ela e que se transformou em sucesso foi “Marvada Pinga”. Segundo Inezita, a música era de domínio público e possuía ao menos sete versões, outras fontes, porém apontam a composição como de Ochelsis Laureano. Para a pesquisadora, isso era a essência do caipira, ou seja, de tempos em tempos alguém ampliava ou modificava a letra da música conforme lhe convinha. 
“Leilão”, de Heckel Tavares e Joracy Camargo, outra música gravada por Inezita, possibilita um outro olhar sobre o passado brasileiro. A canção retrata cenas coloniais como a chegada dos africanos escravizados ao Brasil, destacando suas intensas lembranças da África e as condições de vida no cativeiro. A música, na voz de timbre tão característico de Inezita, em tom de melancolia, possibilita o enriquecimento da alma. Uma obra de arte. 
Inezita, por quase quatro décadas esteve à frente de um dos programas de maior audiência da TV brasileira, o “Viola, minha viola”. Esse sucesso pode ser tomado como evidência do espaço que a cultura caipira e em especial a música de raiz ocupam na cultura brasileira contemporânea. Deve-se destacar que o programa, além de sua função de entretenimento, tornou-se uma das maiores fontes para pesquisadores do gênero, por apresentar antigas e novas gerações de compositores e intérpretes que contribuíram e contribuem com a preservação da autêntica música caipira. 
Inezita afirmava sempre que o mundo caipira era um “mundo machista”, no entanto, outras mulheres tiveram o mesmo êxito que Inezita. É o caso das irmãs Mary e Marilene, conhecidas como “As Galvão” que completam, em 2015, 68 anos de carreira. A dupla, incentivada pelo pai, sofreu preconceito pelo resto da família. Começaram cantando ainda crianças mas o espaço no rádio que foi diminuindo na medida em que se tornavam adultas, por puro preconceito.
No universo caipira, abraçado muito cedo, somente elas e Inezita Barroso resistiram ao tempo, às imposições e ao machismo. Para provar que podiam competir na música caipira, aprenderam, além do violão e sanfona, a tocar viola e dançar catira. Nenhuma outra dupla feminina conseguiu tamanho sucesso. Foram pioneiras ao viajarem pelo interior do Brasil e a cantar em circos, espaço das duplas masculinas. Entre seus sucessos estão “Beijinho Doce (Nhô Pai)”, “Viola sem defeito”, de Athos Campos, e “No calor dos teus abraços” (Niceas Drumont/Cecilio Nena).
Música caipira: do que é que estamos falando 
Para se compreender a música caipira como elemento da cultura nacional é preciso relembrar que, na década de 1920, surgiram no Brasil estudos de resgate dessa cultura. A partir dessa década, surgiram as primeiras canções caipiras gravadas em disco, como a célebre “Tristeza do Jeca”, composta por Angelino de Oliveira em 1918 e gravada em 1923. 
Mas será com Cornélio Pires e sua Turma que esse gênero musical entrará na indústria cultural. O primeiro passou a se apresentar pelo interior paulista fazendo shows e gravando seu primeiro disco em 1929. Em 1931, tocou no Teatro Municipal de São Paulo alcançando o reconhecimento do público. Esse foi um período de transformação na história da música caipira, pois a partir daí as canções foram apropriadas pela indústria cultural e entraram para o universo da cultura de massa. 
Esse momento marca, portanto, a transição da música caipira composta e cantada pelo homem do campo para outra forma de expressão denominada de música sertaneja, feita na cidade pelo e para o migrante caipira urbanizado. Grandes mudanças passaram a ocorrer na composição das letras: as temáticas que antes tratavam de ritos religiosos, canções de trabalho, ciclos da lavoura, passam a tratar do amor, da nostalgia gerada pela perda do lugar e da cultura de origem. 
A cultura do campo é levada ao homem urbano através dos programas de rádio das grandes cidades, influenciando compositores urbanos como Noel Rosa (“Festa no Céu”, “Minha Viola”, “Mardade Cabocla”), Ary Barroso (“Rancho fundo”) e Lamartine Babo (“Serra da Boa Esperança”), que só mais tarde se tornariam sambistas. 
Mas, se o homem do campo foi para a cidade, a que classe passa a pertencer? Dada a grande migração a partir do período desenvolvimentista de 1950, esses homens passam a fazer parte de diferentes segmentos da classe operária, mas sem esquecer o passado e as origens, como expressa o fragmento da canção “Sodade do tempo véio”, de Sorocabinha, com Mandy e Sorocabinha, de 1939: “É só eu pega na viola, me vem a recordação: o tempo do meu sitinho, que tudo era bom, ai... que tudo era bom. (...) 
  Marcada por uma identidade própria, a música caipira enquanto linguagem expressa conteúdos (modos de pensar e compreender o mundo, de se divertir, de trabalhar, de se relacionar, de viver) de uma cultura que, ao longo da história, foi sendo definida como “subcultura”. Essa linguagem, porém, pode ser utilizada como formadora de um novo conceito a respeito da cultura caipira e do caipira, sendo capaz de destruir alguns mitos, de que se trata de uma “subcultura” da cultura brasileira. 
É relevante destacar algumas obras que contribuíram para a construção de uma representação do mundo do campo (agora chamado “caipira”), no período modernista. Enquanto a maioria dos fotógrafos, literatos e artistas plásticos da Belle Époque brasileira destacavam o desenvolvimento urbano e econômico do país – o que nos proporcionava a condição de “civilizados” – Monteiro Lobato (Urupês, 1918) e Paulo Prado (Retrato do Brasil, 1928) procuram desconstruir essa imagem do País europeizado e acabam mostrando as mazelas da sociedade brasileira. Como o lastro da economia do país, naquelas décadas, vinha sobretudo da agricultura e, em decorrência, havia grande concentração demográfica no espaço rural, ao criticar a mentalidade da elite agrário-exportadora do país, Lobato acabará criando um personagem caricatural do homem do campo, o Jeca Tatu, regenerado posteriormente com o Zé Brasil. 
Assim, desde o início do século XX, há uma vasta produção escrita e iconográfica que associa o campo a ideias de atraso e desqualificação (moral, intelectual, tecnológica). Essa representação negativa e pejorativa da vida e das pessoas do espaço rural permaneceu, e foi contra ela que Inezita Barroso lutou, trabalhando em prol da valorização de uma parte significativa das raízes da cultura brasileira, expressas na música e na cultura caipira.
Embora não seja produzida com finalidade pedagógica, a música caipira pode ser utilizada, pelos professores em aulas de História, Literatura, Geografia e Arte, por exemplo, como fonte a partir da qual os alunos podem se aproximar das formas culturais que identificam determinados grupos sociais, produtores de realidades sociais diversas. 
No caso específico da música caipira, que carrega, assim como outros gêneros, uma gama de metáforas e simbologias, é possível afirmar que pode auxiliar alunos e professores na construção do conhecimento, estimulando a capacidade de análise a partir de comparações de épocas e sociedades diferentes. Também pode contribuir para corrigir ideias preconceituosas naturalizadas ao longo da História brasileira, uma vez que coloca em pauta concepções, sentimentos e opiniões do caipira sobre diferentes temas da vida nacional e da vida humana, em geral, como o trabalho na cidade ou no campo, o amor, a guerra, o tempo e a natureza. 
Ouvir músicas que retratam temas como a mulher, a República, o malandro, o regenerado, a cidade ou o campo é um fato do cotidiano de muitas pessoas, mas nessa circunstância a audição tem finalidade em si mesma – ouve-se música porque se quer, porque se gosta, e não porque é uma fonte de reflexão sobre o tema em questão nas canções. Sabe-se, porém, da importância da música dentro da sociedade, sobretudo das canções que tratam de temáticas fundamentais e que ajudam a construir argumentos ou sentimentos sobre a forma como viveu ou vive um grupo social, uma sociedade. 
Carregadas de materiais simbólicos, contribuem para a compreensão de uma dada realidade e permitem a construção de novas leituras sobre ela. Uma canção pode auxiliar os ouvintes mais atentos a se situar dentro de um contexto histórico, construindo novos significados. Do ponto de vista do ensino, pode servir como fonte para a interpretação de fatos de um determinado tempo, criando argumentos que ajudam a desvendar imagens sobre um povo, sua vida, sua cultura. 
Ressalta-se, portanto, que a inclusão da música caipira nas aulas, pelos professores, poderia ser um valioso elemento para o trabalho de ensino interdisciplinar porque apresenta um caráter narrativo das dificuldades do homem rural na cidade grande, bem como a contraposição dos valores urbanos frente aos do sertão. Além disso, pela riqueza das temáticas abordadas, de forma narrativa, pode abrir inúmeras possibilidades de articulação com diferentes conteúdos escolares. 

*Historiador, é doutor em educação pela UFPR e professor do Instituto Federal do Paraná
http://www.cartafundamental.com.br/single/show/394