quarta-feira, 10 de julho de 2019

Um doce de Salinas, uma Salinas doce
Da esquerda pra direta: o produtor da rapadura , o motoboy e eu o "cana boy"

Saio da propriedade dos Santiago e depois daquela imersão na história da fazenda Havana há poucos metros de distância da porteira, à margem da rodovia me deparo com uma moenda modelo trapiche. Como um cão farejador embrenho, ou melhor embrenhamos eu o piloto da moto naquele local de aparência rude.  Ali existia uma produção de melado, rapadura e um tipo de rapadura composta. Experimentei a de abóbora com côco e a de mamão. Ambas sensacionais! Recomendo MUITO! Este tipo de rapadura composta com queijo é uma iguaria que pode ser servida como sobremesa das refeições mais simples às mais aristocráticas.

Um trapiche. Peça de museu ali, utensílio aqui

 Neste local me chamou a atenção o orgulho do produtor da rapadura, sua simplicidade e atenção em mostrar os mais diferentes tipos de doce. As instalações certamente não foram visitadas pelo requinte e pelo cuidado com os equipamentos mas por  “farejar” e  perceber que ali, naquela foto de “Brasil profundo” certamente teria algo a aprender. 

 Nesta viagem aprendi que o doce regional de Salinas é essa rapadura, pelo menos para mim. Que a cana de Salinas é doce mesmo! Que o Bálsamo de Salinas tem cheiro de sertão, que cada lugar desse Brasil possui seu traço na produção e são vários os fatores que incidem para que essas diferenças aconteçam mesmo para quem está em Salinas ou na mais alta Novo Horizonte.

 Aprendi que o Brasileiro precisa realmente conhecer melhor os diferentes “Brasis” que coexistem. Vivemos em uma eterna busca por nossas raízes  pois fato é que a história dos homens comuns, dos  alambiqueiros, tanoeiros, fazedores de rapadura geralmente não está nas páginas dos livros. Esta história quando sobrevive, resiste na boca do povo, na tradição oral, na cachaça pois ela está e é a boca do povo.  Talvez por isso esse apreço tão grande pela preservação histórica por parte da família Santiago. Talvez por isso a preocupação histórica de muita gente como eu que coleciona rótulos, traquitanas, dornas, fotos. Para que no futuro não esqueçam as raízes, não esqueçam de onde saiu a cachaça, que gente a fez, e ainda faz. 

O norte de minas é um prelúdio do nordeste e suas desigualdades nos lembram do que fomos, do que somos e do que ainda podemos ser. Numa reflexão sobre "centro e periferia" concluo que não é Salinas que está longe. O Brasil de alguns é que está distante do Brasil. O Brasil de alguns que parecem ter vergonha ou pelo menos não tem orgulho, principalmente por desconhecimento. Em Salinas vi muita gente orgulhosa de sua história, orgulhosa do que produz, de sua relação com cachaça. Gente de pele morena, mineira de sotaque baiano, gente muito acolhedora. 

Parece que a Cachaça ainda é um desses elos com esses interiores e que ela, nossa amada cachaça, tal qual uma divindade vez ou outra nos cobra que se quisermos nos apropriar do discurso, da história da cachaça, teremos que olhar para nossas raízes, teremos que olhar para nosso interior.

E me vejo viajando em um mototáxi no interior do Brasil e reflito que esta fabriqueta de rapadura ou “casa de cozer méis” não estaria à margem da rodovia por acaso.

No universo da cachaça existe mais profundidade no copo do que imagina nossa vã filosofia.

Agradecimentos

À Cleber e Geraldo Santiago meu muito obrigado. Com o atendimento de vocês tenho certeza que a Havana/ Anísio Santiago continuará encantando muitas gerações e disseminando o legado da boa cachaça de qualidade plantado por Anísio Santiago.

À Tito Moraes pelas dicas, caronas e prosas. Voe alto meu Tiziu.

À Xavier por seu acolhimento, seu sorriso discreto e coração grande de Sabiá.

À Patrícia e Leandro da Ácqua Mineira pelas caronas, conversas e companheirismo.

À Sérgio da Obra de Arte por ser o melhor e mais generoso guia que poderíamos arrumar.

À Marcelo do Instituto Federal por suas dicas e receptividade.  

À você leitor que chegou até aqui nesta viagem comigo, um abraço forte como cachaça!

terça-feira, 2 de julho de 2019

A Fazenda Havana


Na Fazenda Havana




E assim de moto táxi subi em direção a Novo Horizonte. Havia marcado com Cléber e Geraldo Santiago minha ida pela manhã e às nove em ponto lá estava junto com o moto táxi na porteira da fazenda. Faço uma observação pouco modesta: a fazenda Havana não costuma abrir o alambique às segundas feiras sobretudo após o festival por conta do volume de visitas que recebem. Realmente abriram uma exceção para mim. Foi assim que me senti um honrado privilegiado!

Alguns pés de café na entrada do terreno, algum gado e chegamos à sede da fazenda Havana.


Construção simples e preservada na fazenda Havana- Salinas-MG

Sou recebido por Geraldo Santiago e logo depois por Cléber Santiago. Ambos como guias "arrebentam". Geraldo, à época,  residia em Porto Seguro e sempre volta a Salinas principalmente na oportunidade do festival. Conta a história da família, a quantidade de irmãos e sobretudo brilha os olhos quando fala de seu Pai, o Sr.Anísio Santiago.


Para saber um pouco mais da história do homem simples e produtor de cachaça Anísio Santiago recomendo a leitura do livro O Mito da Cachaça Havana- Anísio Santiago escrito por Roberto Carlos Santiago (Edições Cuatiara- 2006).

Anísio Santiago


Da importância da memória: sinergia na foto

O pioneirismo de Sr Anísio Santiago é percebido de diferentes maneiras. Um exemplo disto é que enquanto a luz elétrica só chega à Salinas em 1972 através de gerador à diesel a fazenda Havana já tinha luz desde 1960 com uma pequena usina no sistema Roda Peltron. A fazenda produzia o próprio café, o próprio açúcar, tinha sua autonomia de roça e gado ou seja, auto-suficiente e sustentável muito  antes dessas palavras serem recorrentes nos dias atuais.

 Sr.Anísio é o primeiro produtor de cachaça de Salinas a envelhecer cachaça em tonéis de Bálsamo e rotular seu produto. Para a época isto significou uma forma de seus consumidores identificarem sua produção principalmente em Montes Claros, cidade vizinha e grande pólo de  comércio e distribuição de sua cachaça. Para o produtor uma forma de agregar valor. O mais importante: sem ambição, já que segundo relatos, Sr Anísio não colocava o lucro como uma prioridade.


Bancada de madeira maciça

Geraldo Santiago me mostra a bancada onde o Sr Anísio também trabalhava como marceneiro e pelas invencionices é possível perceber seu cuidado por manter tudo funcionando, tudo “tinindo”, prova disto é o Chevrolet  Lead Master 1947 muito conservado e  como diz o povo "rodando mais que notícia ruim". 
Acervo da Fazenda Havana


Se mudar têm um preço, qual o preço de não mudar?

O antigo apontando o para o presente, o novo voltado ao passado

Muitas pessoas me perguntam se a cachaça Havana/Anísio Santiago tem justificativa para custar o que custa já que chega por São Paulo e Rio de janeiro beirando os quatrocentos reais. Então vamos lá:
Copo Furado e Anísio Santiago: história social da cachaça

Primeiramente é importante salientar que a cachaça é produzida pela família Santiago com o cuidado de manter todas as características de produção do período em que Sr Anísio Santiago estava à frente. Neste sentido lembro do amigo Nando Chaves da cachaça Séc.XVIII de Cel. Xavier Chaves- MG. Nando costuma dizer:  “...Thiago eu não posso fazer a cachaça do jeito que quero, eu preciso fazer uma cachaça respeitando a tradição do que se fazia no século XVIII...”. Este também é o cuidado da família Santiago: respeitar o legado construído pelo patriarca.

A propósito, engenhos e alambiques com a história da fazenda Havana nos remetem à discussão sobre a adequação destes patrimônios históricos à legislação vigente para a produção  de cachaça pois nem sempre as exigências do MAPA(Ministério da Agricultura Pecuária e Abastecimento) consideram o elemento histórico no que se refere à estrutura arquitetônica da unidade produtora. Com isso muitos produtores de cachaça de fazendas e engenhos históricos acabam tendo um gasto maior em manter a estrutura histórica e adaptá-la às novas exigências do que se construíssem uma unidade produtora completamente nova.  Engenhos com alambiques como Havana, Séc. XVIII, Colombina(fazenda do Canjica), Barra Grande (SP) são experientes nesse assunto que merece bastante carinho.


Moenda modelo "trapiche" acervo da fazenda Havana
 O canavial ainda preserva a cana Java do tempo de Sr Anísio. A fermentação continua sendo feita à base de milho produzido na própria fazenda. A destilação em equipamento de cobre ainda é feita em um destilador do tipo “Tromba de elefante” sem serpentina, com alonga e sem deflegmador. 



Estes são elementos que vão interferir diretamente não apenas no sabor do produto mas também no rendimento de cada destilação.
Este rendimento tende a ser menor comparado com os equipamentos de modelos mais recentes. A condensação é feita através da água que resfria o Capelo ou Capitel, parte superior após a coluna do alambique, que é bem pequena! A panela do alambique é aquecida por fogo direto. 

Há que se lembrar que no copo a Havana/ Anísio Santiago do alto dos seus 44,8° Gl ostenta um vivo colar de persistência incomum nos dias atuais onde os produtores têm preferido teores alcoólicos menores e mais "acessíveis" ao grande público. Eis a análise sensorial poética de minha autoria:
Havana/ Anísio Santiago

No braço uma garrafa
Um sabor na memória
Pungente e autêntica
Floral agreste é sua história
É quente, quase nordeste
Especiarias, erva-doce
E como se manjericão fosse
Norte-sul, leste- oeste
Borbulha um colar de arte
É num beijo assim a minha parte 
Sol mais forte que o daqui
Um calor indefinível
Sabor bom imprevisível 
Desses feito o do pequi
Anis de Anísio
Santiago ficou perto de Havana
Pra quem gosta de cachaça
Essa é mais que u'ma garrafa
É alcançar uma graça
Abraço forte de quem se ama
Thiago Pires

Salvo as falsificações, nunca escutei de alguém que a Havana/ Anísio Santiago estivesse fora de padrão, o que é sinal de uma ótima padronização, atributo das melhores marcas. 


A simplicidade do "Tromba de Elefante"

Estas já seriam algumas especificidades que confeririam à Havana/Anísio Santiago elementos de exclusividade mas não pára por aí. No quesito envelhecimento Cléber Santiago nos conta que a Havana possui um padrão conferido por seus tonéis antigos de bálsamo de Salinas. Recentemente adquiriram novos tonéis mas para se ter um ideia estes tonéis só vão ser utilizados praticamente daqui a oito anos já que como dornas novas ainda vão demorar um tempo para entrar no padrão das outras dornas usadas para a Havana/Anísio Santiago.
Salinas e sua icônica madeira de Bálsamo

 Outro elemento que confere um diferencial é que segundo Geraldo Santiago, desde que seu Anísio estava à frente da fazenda Havana sempre teve por hábito remunerar seus trabalhadores acima da média e têm procurado manter este histórico. Devemos lembrar que a cachaça Havana/ Anísio Santiago possui selo de indicação geográfica e certificação de orgânico. Sendo assim independente de você gostar de bálsamo ou não, de achar a embalagem muito simples ou qualquer outra coisa, é preciso considerar o conjunto da obra, o estado de arte.  
Sala de fermentação impecável
Estes seriam elementos materiais que poderiam justificar um preço acima da média em se tratando de uma cachaça envelhecida por oito anos em bálsamo. Há que se considerar os intangíveis, os elementos que agregaram valor à marca por conta de sua história e do protagonismo de seu produtor. Há que se considerar que a família optou por manter viva a história e que isto possui um custo mínimo.
Paróis. Acervo da Fazenda Havana

 Geraldo aponta como a concorrência de hoje em dia é um elemento com o qual não consideravam há vinte anos atrás. Agora em 2019 Salinas possui outras cachaças com história e têm procurado do seu modo apresentar outros ícones. Há cinquenta anos atrás cachaça de Salinas era sinônimo de Havana. Isto não significa que a cachaça perdeu valor, pelo contrário, para manter sua forma de produção intacta, entendeu que mais valioso que seu sabor, que em si já é algo que merece alguns comentários, é sua trajetória, sua família, sua história e a relação com seus clientes.



A Havana/ Anísio Santiago talvez seja a marca de bebida brasileira mais falsificada em mercados sem procedência. Isto também cobra dos produtores buscar formas de garantir a autenticidade do produto, seja na questão do líquido, seja na questão do rótulo.  Fato é que a marca é um ícone e ícones são construídos pelo tempo e pela autenticidade.
Geraldo e ao centro Cléber Santiago: Havana em boas mãos de gente boa

Depois de um bom papo, de adquirir minhas garrafas digo que sou curioso quanto à matriz da Havana/ Anísio Santiago, ou seja a versão branca, sem amadeiramento. De pronto Cléber me pergunta se tenho uma garrafa. Não! Eles conseguem uma long neck de 275 ml e a enchem com uma matriz branca. Essa não é a Havana, essa é não é a Anísio Santiago. Essa é a matriz da Havana. A matriz da Anísio Santiago. Esse produto não existe no mercado. Mais uma vez me sinto um privilegiado, presenteado por aquela jóia e tenho certeza que a confiança e o acolhimento da família já seriam um grande presente. O sensorial deste líquido deixo guardado com os amigos com que fiz questão de compartilhar.



Um abraço forte como cachaça!