Nessas ideias que nos batem meio que do nada (sou acometido
por elas direto) este ano sonhei com uma folia de reis que saía de Laranjeiras
e ia até Botafogo. Conversei com algumas pessoas a fim de resolver a folia do
lado de cá, laranjeiras, já que do lado de lá já tem sua folia. Confesso que
não tive o êxito que queria mas pude conhecer um pouco melhor a famosa folia do
Santa Marta.
Palhaços da Folia
O grande Luis Cláudio (sim o Muca) foi quem me colocou em
contato com Juninho da folia. Juninho me explicou que seu avó veio de Miracema
(noroeste fluminense na divisa do estado do Rio com Minas) e se estabeleceu na
Ilha do Governador. Da ilha do governador migrou para a comunidade do Santa
Marta levando também o folguedo.
Sr Luizinho (sanfoneiro) e Mestre Riquinho
Segundo Juninho , as folias do estado do Rio tendem a
encerrar suas atividades no período de reis mas as folias da cidade do Rio de
Janeiro encerram as atividades no dia vinte de janeiro, por conta do padroeiro
da cidade, São Sebastião.
Enfim, esta não é uma “matéria” sobre a folia. É muito mais
o compartilhar de uma experiência com um folguedo de origem rural que já foi muito mais presente
e hoje é feito por foliões resistentes e que numa cidade tão urbana como o Rio ainda mantêm o hábito de visitar os donos da casa.
Coloco aqui algumas observações que acredito muito interessantes do modo de fazer cachaça de Nando Chaves:
Foto : arquivo de Nando Chaves
Canavial
Utiliza majoritariamente cana própria. O que não produz é de vizinhos próximos que acabam cultivando a mesma variedade. Nando possui muito cuidado com sua matéria-prima. Em conversa com ele ao perceber que havia uma flor de cana no canavial (pendão) ele afirma: “...aquelas canas precisam ser cortadas pois ao produzir a flor, a energia toda do caule da planta é dirigida para manter a flor viva e com isso perde sacarose.
Sua variedade de cana fora adquirida através da universidade de Viçosa com um produtor de Cataguases. A variedade é originária da cidade de Coimbatore na Índia.
Moagem
Além da bucólica roda d’água o Engenho Boa Vista possui uma moenda elétrica para que nos períodos em que todas as dornas estiverem fermentando possa auxiliar a moagem da primeira que é mais lenta. Nando desenvolveu uma área de armazenamento de cana toda feita de bambus o que dá um visual rústico porém funcional e barato. O bagaço de cana é separado em secos (mais antigos) e úmidos (mais novos). Com isso controla a combustão do fogo para a fornalha.
Moinho de pedra onde prepara o fubá
Fermentação
Utiliza fermento caipira com milho criolo (não híbrido) plantado no meio do canavial. Com isso ele consegue fazer com que os micro-organismos que deseja no flavour (tanto leveduras como bactérias) estejam presentes no milho que vai fermentar o caldo.
Um exemplo da relação de Nando com o meio ambiente é a observação em relação aos insetos que se manifestam “interessados” na fermentação. Segundo ele se tiver mosca varejeira ou pulgão de canavial rondando a área de fermentação é sinal de que o processo está acontecendo harmonicamente porém se ver alguma drosófila (mosquinha da banana) começa a se preocupar com a acidez do caldo.
Algo que achei interessantíssimo é que ao se aproximar das dornas de fermentação para me mostrar o caldo abaixou o tom de voz pedindo para evitar falar próximo ao fermento até porque tinha perdido um pé de cuba há poucos dias.
Suas dornas de fermentação são caixas de aço inox encaixadas em tanques de alvenaria que era onde antigamente o caldo era fermentado.
Destilação
Utiliza um equipamento de fogo direto com capelo e serpentina. O modelo é sem deflegmador mas possui pratos internos no comprimento da coluna. Nando encomendou a coluna orientando a empresa construtora em relação ao modelo que queria, pois segundo ele tinha que ser do mesmo sistema do anterior. Quando lhe perguntei sobre destiladores ele disse: “...tenho algumas panelas e algumas colunas em um depósito aqui, não jogo nada fora..”
Aquecimento direto
Como já escrito, controla a temperatura da fornalha alimentando-a com diferentes tipos de bagaço. O mais seco será utilizado para levantar o início do fogo. Ao começar a destilar o coração utiliza um bagaço mais úmido que lhe permite controlar a temperatura e alambicar a fogo baixo. Isto nos dias atuais é cada vez mais raro com a maior utilização dos alambiques a vapor de caldeira onde o aquecimento é gradual e exige do alambiqueiro abrir e fechar os registros de alimentação de água e eventualmente mais bagaço ou lenha para a caldeira. Até pouco tempo Nando alambicava com uma panela sem termômetro e como teve que mudar de panela a empresa acabou adaptando um termômetro que ele diz ser até dispensável pelo tanto que conhecem o forno e o destilador. Com isso Nando afirma:
“...o cara pode ter feito curso de mestre alambiqueiro no melhor curso existente e ser muito bom mas aqui ele precisa alambicar nos moldes do Séc. XVIII. Por isso se chegar alguém aqui querendo fazer o serviço de alambiqueiro, a primeira função que terá que fazer é carregar bagaço pois ali ele vai entender o consumo do forno...”
Segundo Nando, sua taxa de cobre é muito baixa porque alambica todo ano e ressalta a importância disso para que o cobre seja sempre baixo independente de filtro para este tipo de metal. Para este tipo de equipamento possui um rendimento muito bom onde tira 100lts por cada alambicada. A panela possui 600 lts de caldo.
Descanso
Sua cachaça antigamente repousava em uma cisterna subterrânea de pedra parafinada. Com a exigência do ministério da agricultura teve que adquirir dornas de aço inox para sua cachaça. Atualmente pensa em transformar o espaço da cisterna em uma área de armazenamento de tonéis de aço inox.
Não possui tonéis de madeira, mas isto não significa que não repouse sua cachaça, pois possui diferentes cachaças brancas todas separadas por safra .
Engarrafamento
Possui dois tipos de embalagem, uma garrafa de 670 ml onde vende a safra do ano anterior, sendo portanto sua cachaça mais nova e as de safras mais antigas nas garrafas reutilizadas de vinho de 750ml, com rótulo e contra-rótulo muito mais simples. Esta última também é vendida em garrafa de 670ml em um rótulo vermelho. A garrafa que a princípio seria mais barata, utiliza para a bebida mais nobre, agregando valor com lacre tradicionalmente metálico e rolha de cortiça. Um conceito tradicional a um produto tradicional. Sabiamente agrega valor. Como disse possui dos três rótulos um em embalagem de papel comum e outros dois com uma belíssima arte influenciada por Dona Cida Chaves autora do texto que apresenta a cachaça no contra-rótulo.
Distribuição
Cinco mil litros de sua produção são destinados a “Santo Grau” que se mostrou uma importante parceira neste processo de valorização de engenhos históricos. Nando contou-nos dos desafios de trabalhar com uma empresa que se tornou multi-nacional e hoje por exemplo consegue distribuir a Santo grau Séc. XVIII em todos os free-shops de aeroportos do Brasil. Para ele isto seria impensável sozinho. O que é interessante é que a Santo grau consegue ter um produto conceitual, agregando valor e reconhecendo um lado cruscial para o universo da cachaça: a cultura. É importante citar o trabalho da Santo Grau pois distribuir cachaça em um país como o nosso com tantas questões de infra-estrutura é uma missão e tanto. Bom ver que a melhor negociação é aquela em que todos saem ganhando.
Para os produtores fica o exemplo de que ter um cliente fixo com capacidade de distribuição pode ser uma boa solução para evitar cachaça "encalhada" em barril.
Aproximadamente quarenta e cinco mil litros são engarrafados e distribuídos por Nando como Cachaça Séc. XVIII na região e para todo o país, outra grande responsabilidade.
A degustação “ Pimenta que não arde, cachorro que não morde, cachaça que não é forte não resolve”
A cachaça Séc. XVIII talvez seja o melhor exemplo de cachaça rústica que tanto tenho abordado neste blog. Aroma adocicado lembrando cana colhida na hora, com o frescor de um dia de chuva. Sente-se um frescor vivo no aroma. No paladar a confirmação do doce com um ligeiro metálico que pode ser confundido com um mineral. Servida no copo já demonstra seu tradicionalismo em um lindo rosário. Coisa fina, coisa da antiga. Chama atenção a persistência destas borbulhas e a viscosidade viva que possui. Isto principalmente na cachaça mais nova.
No alambique as mais novas que experimentamos foram a safra do ano (2015) e a que batizei como da “semana” (agosto de 2016). Todas estas referências se tornam mais amenas nas cachaças com mais tempo, mas sem que sumam , estão lá mostrando o trabalho do tempo, aperfeiçoando uma matriz que já começa muito bem.
Nando serviu-nos uma safra de 2014 espetacularmente doce, segundo ele reflexo de um ano de safra com pouquíssimas chuvas. Retro-gosto de cana e fundo de copo de cana lembrando o doce.
Ressalta-se que é uma cachaça simples (possui muito corpo) e este é seu maior atributo pois enquanto cachaça branca traz todas as referências que se procuram na imagem inconsciente da cachaça branca (cheiro de bagaço de cana ou cana, milho, doce, frutas, erval, capim, fermento...). Ótimo exemplo de cachaça com graduação alcoólica alta e controle de acidez 47 e 48° GL.
Aos que querem se aproximar mais das branquinhas recomendo um experiência: degustar a Século XVIII nova (rótulo azul) comparando-a com o exemplar de mais de dois anos (rótulo vermelho) e com a Santo Grau Coronel Xavier Chaves. Uma experiência que rende muito aprendizado sobre padronização, graduação alcoólica, acidez e certamente a estética da cachaça branca.
Fundo de copo (acabando a degustação)
Nestes dias em que percebemos a força do mercado e “...da grana que ergue e destrói coisas belas... ( Caetano Veloso)” dá orgulho beber uma cachaça que não está nem um pouco interessada em seguir a moda ou a tendência dos habituais 38°, 39° no máximo 42°GL de graduação alcoólica. Lembro que as cachaças de Salinas tinham geralmente no mínimo 45°GL e o que vemos hoje é a expansão das graduações baixas, salvo exceções de produtores que seguem a mesma linha tradicional que Nando Chaves ( a Havana/ Anísio Santiago/ Havaninha possuem 48°) ou a nova "Bruta" da cachaça Mil Montes de Faria Lemos- MG.
O Engenho Boa Vista também traz o debate acerca de alambiques históricos. Até que ponto é necessário que mudem sua produção? Até que ponto precisam se adequar ou a legislação é que tem que contemplar a trajetória destes, criando exceções? Imaginemos o quanto alambiques como o do Sr Anísio Santiago (Havana- Salinas), que não é secular, tiveram que se adequar? Será que algum dia aquela destilação com "tromba de elefante" pode vir a ser proibida alegando-se outros padrões de produção e consumo? Temos vários alambiques com mais de cem anos em operação e esta característica é uma importante forma de valorizar a unidade produtora e colocá-la como testemunho da mudança das formas de fazer cachaça. É importante refletir sobre isto neste momento em que padrões têm sido estabelecidos.
Rústica Mesmo!
Gostou do estilão forte da Séc XVIII? Aos que gostam das graduações alcoólicas mais elevadas em cachaças brancas (sou fã) fica uma relação para estudo que acredito básica de se ter em casa:
Rainha- Bananal PB (aguardente)
Aroeirinha- Porto Firme MG
Vitorina Branca – Fortuna de Minas
Cachaça Cachoeira de Cachaça – Vassouras- RJ
Mil Montes “Bruta”- Faria Lemos- MG
Corisco- Paraty- RJ
Saideira
Nando possui um compromisso com seus clientes, com a reputação de sua família e com o próprio tempo pois representa a história prática de fazeres que remetem ao Séc. XVIII. Lembro que quando o produtor abaixa sua graduação alcoólica ele possui um maior rendimento em termos financeiros e por isso o custo benefício da cachaça Séc. XVIII a incluiu em um produto de comércio justo. Possui um preço totalmente compatível com sua história e com o trabalho dos envolvidos.
Nando chaves orgulha-se de gerenciar o engenho há 25 anos e diz:
“...Thiago, desde que me entendo por gente, não houve um ano que não se fizesse cachaça neste engenho..”.
Para quem sabe o trabalho de produzir cachaça isto é um título para poucos.
Como diz o texto de dona Cida Chaves: “....o tempo pede paciência e humildade. Poucos litros de cada vez para a qualidade acima de tudo. Isto faz a diferença...”
O tempo não se engana mesmo!
Agradecimentos
Fica o primeiro agradecimento ao gaúcho Moraes, pessoa fundamental para que eu tivesse a breve experiência de produzir a cachaça Tio Anastácio em Saquarema- RJ. Desde que me entendo amigo de Moraes que ele fala do "Nandinho". A paixão por cavalos e cachorros além de um grande amigo comum ( o agrônomo Rondon) aproximou estas duas pessoas. Foi assim que fui à Séc. XVIII conhecendo muito de Nando e praticamente com uma carta de apresentação de Moraes.
A sr Rubem Chaves e Dona Cida Chaves. O primeiro, paciente, quieto, de sorriso discreto e super acolhedor, a segunda uma pessoa encantadora talentosa com quem conversamos muito sobre política, história, feminismo, arte e literatura. Tivemos a honra de ser agraciados por Dona Cida com alguns de seus livros. Dona Cida, esteja certa de que meus alunos se encantaram com a Sossô.
Livros de autoria de Cida Chaves
A Jaqueline Luz, companheira que sempre registra as fotos e vídeos. Amante e conhecedora destes interiores brasileiros;
A Nando Chaves que nos recebeu super bem com sua "levitação sem meditação" (procurem saber) e que além de dar uma aula sobre cachaça é capaz de contar grandes causos e histórias, de sua vida e sua região. É o garoto propaganda que nos faz procurar a cachaça do Nando por mais que tenham eles sete gerações de história com cachaça.
A você que acompanhou estes relatos um abraço forte como uma Séc. XVIII.
Dedico este último vídeo a Dona Cida Chaves a quem fiquei devendo uma prosa de viola. Esta é a sua cozinha Dona Cida antes do café!
Após sermos recebidos por Nando
chaves, ali em seu escritório escutamos uma verdadeira aula de história da
produção de cachaça no Brasil já que falou do período de profissionalização e
modernização dos alambiques a partir da legislação que de fato regulamentou o produto
embora tenha ajudado a fechar muitos engenhos. A maioria destes alambiques não
tinham condições financeiras de atender às exigências, que muitas das vezes não consideravam a realidade dos produtores.
Rótulo tradicional. Safra 2003
O produtor deu um exemplo muito prático: pelo ministério
da agricultura teve que “telar” as dornas de fermentação para protegê-las de
agentes externos. O que ocorre de fato é que com a elevação do volume do caldo
na fase tumultuosa ( a fase mais agitada) este caldo fermentado acaba
encostando na tela e deixando-a suja de caldo e favorecendo mais contaminações
bacterianas do que se não houvesse tela alguma.
a "envelhecida"
Segundo Nando: “...desde a época
de meu avô ouvia dizer que a bebida tinha que ser protegida da radiação solar.
Por isso que várias bebidas são armazenadas em garrafas escuras. Quando
falávamos isto em relação à cachaça tinha gente que falava que não tinha nada a
ver por conta da graduação alcoólica. Outro dia recebi aqui no alambique uma
pesquisadora que estava estudando justamente sobre a influência dos raios
ultra-violeta no armazenamento da cachaça...”
Nando se mostrou atento às
tendências do mercado como os blends e amadeiramentos intensos mas segundo ele
há um equívoco: costuma-se associar a alteração
dos atributos sensoriais do produto cachaça somente à ação das madeiras, o que é
correto em parte pois ainda que seja uma cachaça branca, esta se “acomoda”
quimicamente com o passar do tempo. A prova disto é que diferente da maioria
dos alambiques Nando possui somente cachaças brancas porém separadas por safra.
Após degustar suas diferentes safras, todas brancas sem madeira alguma,
percebemos claramente a diferença de uma safra para outra. E conseguimos sim
perceber como o tempo interfere em uma bebida, mesmo que esta esteja
descansando em um tonel de aço inox ou mesmo dentro da garrafa. Esta
característica faz com que Nando possa provar o que durante muito tempo fora
apenas uma hipótese. A acomodação química do destilado é constante, mais perceptível quanto mais novo, mesmo dentro da garrafa.
Rótulo da cachaça mais nova (um ano)
Entre o novo e o velho: o tempo
O mundo da cachaça têm mudado
muito. Observamos alguns valores estéticos de outras bebidas sendo aplicados à
cachaça e um destes conceitos é o do envelhecimento intenso em madeiras. Do
ponto de vista sensorial é riquíssimo dialogar com a diversidade de madeiras
que possuímos porém se pensarmos na perspectiva do produtor o glamour das
caves e adegas pode se tornar opaco.
Quando um produtor menos experiente se lança no
mercado da cachaça, um dos insumos vendidos como indispensáveis são os barris. É preciso porém que este produtor tenha uma experiência mínima com amadeiramentos. Quanto mais novo o barril geralmente mais tanino e mais difícil controlar o amadeiramento. Isto mesmo nas madeiras ditas "neutras" que na verdade não são neutras pois conferem menos amadeiramento ou por conta das características da madeira, pelo tempo de uso ou por conta do volume do tonel. Neutro mesmo só o vidro e o aço inox! Quando
um produtor possui barris para armazenar cinquenta, cem mil litros ele está
obrigado a produzir cachaça praticamente todo ano. A menos que não queira ou não precise vendê-la e deixa-la armazenada, do contrário terá que pensar no que fazer com esta cachaça amadeirada. Ainda que o armazenamento tenha o tempo como unidade de medida, o produtor precisa atentar para alguns cuidados como a evaporação do destilado nos barris, a temperatura da adega, a acidez conferida pelo armazenamento, o próprio sabor da bebida dentro do barril (algum barril pode apresentar alguma questão como broca, vazamento, contato da bebida com o aro), o padrão do produto final... Isto obriga o produtor a estar em constante controle dos barris. Obriga o produtor a conhecer cada barril, principalmente os fora de padrão (mais ou menos tanino).
Nando Chaves questiona porque utilizar uma matriz de qualidade tradicional (a cachaça branca) que possui seu público é economicamente mais vendável e transformá-la blend?
“...meu avô, que trabalhava com bebidas no interior de São Paulo, já fazia
blend há muito tempo. Ele chamava de “receitas”. Ele tinha receita para
cachaças aromatizadas e coloridas. Ele fazia cachaça da cor e sabor que quisesse . Aqui fazemos cachaça
sem vergonha de ser cachaça...”, portanto branquinha!
Nando expõe todas as autorizações e análises de seu produto
Nossa próxima postagem aborda os fatores de pioneirismo e diferenciais da Cachaça Séc. XVIII. Muito tempo de história, que nós humildemente vamos descobrindo e compartilhando neste blog.
Engenho Boa Vista: rústico e original como sua cachaça
O engenho Boa Vista fica a seiscentos
metros de distância da casa de Sr Rubens e Dna Cida Chaves. Quando chegamos no
alambique Nando recebia um carregamento de garrafas, conferia nota fiscal,
volume das encomendas, enfim já mostrava ali que atua em todas as posições do
time “Séc XVIII”.
Ultimamente os alambiques têm
tido uma tendência a serem parecidos, ou pelo menos previsíveis, nos projetos.
Conceitos de eficiência, lucratividade e as exigências do MAPA fazem com que
muitos alambiques tenham a mesma marca e modelos de moenda, dornas de
fermentação/aço inox, e equipamentos de destilação da marca líder de mercado.
Ali no engenho Boa Vista, tudo diferente. Lembrou-me muito alguns alambiques de
Paraty há alguns anos atrás, tudo muito simples, funcionando e limpo como têm
que ser. Uma pia com um motor para higienizar garrafas de vinho, testemunhando
o que hoje chamam de sustentabilidade e que Nando já incorporou como prática há
bom tempo. A área de envase separada por uma divisória de vidro colocada para
se adaptar as exigências dos fiscais. Adaptação que notoriamente não estava no
“projeto original ” até porque o original é do Século XVIII. Ali em seu
escritório que é ao mesmo tempo um estoque e almoxarifado Nando começou nosso
atendimento.
Área de Envase
O Começo
Nando falou de sua relação com a Universidade Federal de Viçosa onde se
formou em Zootecnia e adquiriu boa parte
dos conhecimentos que de alguma maneira são utilizados na relação de respeito
que possui com o meio ambiente na produção de sua cachaça. O produtor está à
frente do alambique desde 1989. Antes disso foi responsável por distribuir a
cachaça nos bares da região e conta como a partir dali começou a observar os
hábitos dos seus consumidores.
“ ...cada bebedor têm uma mania pra beber cachaça, uns rodam, uns
recitam poema, uns dão pro santo antes
de beber, outros oferecem pro santo depois de beber , uns contam causos, mas
cada um têm uma mania...” Conta como esta fase foi importante para seu
conhecimento e formação no mercado da cachaça. Passou a identificar tipos de
consumidores e a partir daí traçou melhor o perfil de identidade que iria
trabalhar na Séc. XVIII.
Antes de mostrar o alambique um assunto que chamou
nossa atenção foi o da adequação à legislação. Segundo Nando, sua família
sempre foi muito preocupada em preservar o patrimônio histórico do engenho mas
a partir do momento que o MAPA (Ministério da Agricultura) começou a
estabelecer uma relação de maior fiscalização aos alambiques, eles enquanto produtores não tinham como ao
mesmo tempo atender às exigências e preservar sua história. Segundo ele isto
cobrou muita perseverança e paciência pois talvez até hoje nossa legislação não
abra precedentes para estes casos específicos já que estamos falando de uma unidade
produtora de quase trezentos anos.
Projeto do(a) Séc. XVIII
Uma destas adaptações foi a
desativação da cisterna subterrânea onde armazenavam sua cachaça que se
mantinha branca. O reservatório era escavado na pedra e suas paredes eram
calafetadas com parafina. Tiveram que desativar a cisterna e substituir o
armazenamento pelo aço inox. O armazenamento em cisternas já fora bastante
comum assim como o hábito de enterrar barris para que embaixo da terra o
líquido fosse melhor acondicionado. Segredos que os laboratórios foram se
apropriando de alguma maneira já que hoje em dia as adegas têm sido feitas em
locais úmidos e escuros tendo (às vezes subterrâneos) inclusive com adegas
dotadas de medição de umidade e temperatura do ar, o que vez ou outra faz com
que o produtor molhe seus barris e jogue água pelo chão da adega em épocas mais
quentes ou lugares mais secos.
No próximo capítulo abordaremos os "segredos que aos poucos os laboratórios desvendam" do Engenho Boa Vista.
Religiosamente, em suas reuniões, a Confraria de Cachaça Copo Furado do Rio de Janeiro (a primeira do Brasil-1994) pergunta a seus visitantes como foi sua primeira experiência com cachaça. Em vinte e dois anos de existência muitas histórias inusitadas foram registradas em suas atas que revelam sobretudo a relação de afeto que o brasileiro possui com a Cachaça. Rico patrimônio o dessas atas!
Assistindo o vídeo produzido pela Cachaça Santo Grau, você leitor entenderá o figuraça que é o Nando Chaves e perceberá que seus primeiros paços ou "goles" são a história de sua relação familiar com a bebida. Recomendo que assistam.
A Pré- Produção
A ideia inicial era conhecer o alambique em funcionamento.
Ainda em abril fiz contato por telefone com Nando Chaves perguntando se saberia quando o
engenho começaria a alambicar ao que me respondeu: “...isso depende de São
Pedro...” . Entusiasmado explicara que um dos critérios para começar a preparar
o fermento é o ponto de maturação da cana.Desta maneira,
Nando aguarda a primeira geada para “começar os trabalhos”. A partir da geada a
cana começa a atingir seu ponto de maturação já que a cana produz mais sacarose
com a queda da temperatura e com a falta de recursos hídricos (a geada acontece
com a chegada do inverno que é seco). Já neste momento pude perceber que se
tratava de um produtor diferenciado, atento e respeitoso do tempo da terra. Mais que isso, ao citar “São Pedro” evidencia o diálogo tanto com a sabedoria popular de
sua região quanto com o conhecimento técnico-científico.
Esta prosa é só para apresentar os preparativos para o período de safra. Embora o vídeo tenha sido feito já no alambique, na próxima postagem falaremos um pouco de como o produtor foi assumindo responsabilidades no trabalho com cachaça começando como distribuidor regional passando por todas as funções do engenho. Não percam!
No mês de agosto resolvemos uma dívida antiga com o universo
da cachaça. Visitamos o Engenho Boa Vista que produz a cachaça Século XVIII e a matriz da cachaça “ Santo Grau” de Coronel
Xavier Chaves na região dos Campos das Vertentes- MG.
Ao procurarmos informações na internet e outras fontes encontraremos
muita coisa a respeito desta cachaça a maioria falando de seu passado
“inconfidente”. Trata-se de uma das cachaças mais emblemáticas do Brasil!
Esta postagem será feita como uma destilação em “batelada”
(fracionada) para que o leitor iniciante ou experiente possa degustar cada
informação aos poucos e viajar.
E para começar nossa
viagem fica a dica do vídeo institucional do “ Circuito Turístico Trilha dos
Incondifentes” /tvlocal produtora, onde Nando Chaves apresenta a Séc. XVIII e o
Engenho Boa Vista. Os motivos para acompanhar as próximas postagens ele fala e deixa bem claro. Então não perde tempo tenta arrumar uma Séc XVII porque sabor o computador ainda não passa.
Nas próximas postagens abordaremos o protagonismo de Nando
Chaves na produção da Séc.XVIII, apontaremos como este produto ainda se destaca
em um mercado tão concorrente e mostrar como a Séc. XVIII têm enfrentado os
desafios de preservar seu patrimônio histórico e cultural em relação às
exigências atuais de mercado e legislação (Ministério da Agricultura) afinal
cachaça temos muitas porém com quase trezentos anos de história, essa é única,
então não deixe de acompanhar.
Agradecimento a Eduardo Rodrigues da Produtora Local que disponibilizou o vídeo. O mesmo encontra-se no You Tube.
No mês de fevereiro ganhei uma cachaça
armazenada em uma madeira no mínimo inusitada: Jaqueira. Confesso que já tinha
visto artesanato e movelaria com jaqueira mas tonel nesta madeira para mim foi
uma agradável novidade e de tão curioso, no mês de maio aproveitei uma viagem a
cidade de Teixeira de Freitas, na região do extremo sul da Bahia, para conferir
de perto a produção desta cachaça.
Matriarca na vitrine do Restaurante Sinhô
O contato com o alambique foi
feito através do site divulgado na embalagem da garrafa, o que ainda é muito
raro no universo da cachaça. Ter uma interface digital é algo que pode ajudar
na divulgação e até distribuição das marcas de cachaça, porém esbarramos em uma
questão básica que é a chegada da internet em nossas cidades e distritos. A
outra questão é o uso desta ferramenta pelos produtores. Tenho visto muito
material na internet produzido por degustadores, estudiosos e acadêmicos, mas
os produtores, na sua maioria, ainda estão fora deste universo. A internet veio
pra ficar e não dialogar com o universo digital não só não abre portas, como
pode até mesmo fechar as já abertas. Fica a dica!
Voltando
a Matriarca, depois de deixar tudo agendado por email/telefone rumamos para Teixeira
de Freitas- BA. No quesito comunicação nota 10 para a Matriarca!
Ponto de partida em Teixeira de Freitas: o restaurante Sinhô, que é
capitaneado por Maíra, uma das filhas de Beto Pinto, o produtor da cachaça. Aos
que estiverem nesta cidade fica aqui a sugestão de conferir o cardápio feito
com muita autenticidade e bom gosto, algo perceptível também na decoração do
restaurante. Carnes diferenciadas como a do gado Wangus (cruzamento do nipônico
Wagyu como o europeu Angus) e do Java-porco mostram que a gastronomia é algo
levado a sério pela família.
Aproximadamente quarenta minutos de rodovia entre florestas de eucaliptos
e canaviais chegávamos na divisa de Caravelas com Medeiros Neto onde mais
precisamente fica o alambique. Fomos recebidos pela Sr Lana, esposa de Beto,
que junto com as filhas apresentou a sede da fazenda.
A
propriedade Cio da Terra possui como atividade principal a produção e extração
de madeira renovável de eucalipto, cana para usinas de combustível e gado como
o já citado Wangus. Beto nos contou a relação da região com produção de
cachaça, a presença maioritária de produtores ainda informais e também a atividade
de estrangeiros na região montando alambiques já preocupados com qualidade.
A estrutura da Matriarca foi toda concebida a partir da referência mais próxima
que possuem em relação à produção de cachaça: Salinas, que fica a 400 km de
distância da cidade de Medeiros Neto. Beto bebeu tanto na fonte de Salinas que
“importou” um tanoeiro de lá e dessa forma pode dar início a produção dos
próprios tonéis utilizando um conceito que trouxera da experiência com o eucalipto:
o das madeiras renováveis. Explicou-nos o tempo mínimo para crescimento e corte
de espécies como Jequitibá, Imburana e Bálsamo e compartilhou a necessidade de
se discutir a renovação de madeiras utilizadas para tanoaria. Tanto na cultura
da cana quanto na cultura do eucalipto, as clonagens de laboratório permitem
que variedades melhoradas sejam mais produtivas em menor tempo. Mas e no caso
das madeiras para tonéis, isso seria possível? Sim, mas segundo Beto, ainda
estamos engatinhando no que se refere a produção de mudas nativas clonadas.
Barris de jaqueira da Matriarca
O
projeto do alambique da Matriarca contou com a assessoria de Amazile Biagione
Maia, talvez o nome mais recorrente e um dos mais competentes na assessoria
técnica de alambiques. Amazile sempre foi uma entusiasta das madeiras
nacionais. Beto refletiu que na região a jaqueira sempre foi madeira utilizada
para tudo: movelaria, artesanato, construção civil. Como esta árvore costuma
ser frondosa, é possível fazer largas ripas com ela. Contou-nos de fazer
experiência com as árvores da jaca mole e dura e como esta madeira é rica em
tanino. Segundo ele, os primeiros barris eram extremamente rápidos para dar cor
e sabor aos destilados armazenados.
Adega da Matriarca
Além da Jaqueira, Beto possui Imburana, Bálsamo e a prata (aço inox) para
comercialização, mas possui também Jequitibá e Louro Canela para “Blendar” a
cachaça. Quando pergunto que tipo de fermento utiliza, ele diz: “...agente
sempre joga um pouco de amido no início...”. Um de seus objetivos no futuro é
utilizar a levedura selecionada de seu próprio canavial. Segundo ele já possui
uma centrifugadora para iniciar este processo, mas ainda precisa desenvolvê-lo junto com algum laboratório.
A
estrutura da indústria é realmente monumental . Sua capacidade de produção é 500mil litros, isto mesmo, meio milhão de litros! Atualmente possuem aproximadamente 320 mil litros armazenados. Chamo a atenção de estar construindo uma fábrica de doces próximo ao alambique.
A boa oferta de cana faz com que enverede por outras searas. Segundo ele, o
alambique tem que estar próximo ao canavial para que a cana não “viaje” muito.
A
destilação é feita com aquecimento de caldeira, o que lhe confere maior
rendimento, higiene e controle de temperatura durante o processo. Realmente um
projeto muito bem feito. Quando lhe pergunto em que meses alambicam na região
ele diz: “...nos meses sem a letra “r”...” segundo ele por serem mais frios.
Chamo atenção ao fato de Beto Pinto ser um
verdadeiro devoto da cachaça. Na sede de sua fazenda possui tudo que remeta a
cultura da cachaça: plaquinhas, réplica de destilador e uma infinidade de
rótulos de cachaça, alguns já raridades. Nota-se que as coleções e acervos pessoais
são o primeiro passo de muitos produtores de cachaça que
estabelecem antes de
tudo, uma relação afetiva com o símbolo cachaça.
Em
relação aos produtos chamo atenção à sua cachaça prata que possui baixíssima
acidez, referência doce tanto no olfato como paladar e um acético comum nas
cachaças nordestinas. Uma bela Matriz!
Como até agora só provei uma marca de cachaça em
jaqueira , não posso compará-la com outra, mesmo assim faço aqui algumas
observações:
Visual. O produto é translúcido e bem
filtrado. Possui um dourado tendendo para o amarelo. Sem colarinho ou a
permanência de borbulhas, apresenta viscosidade no rastro do copo que se desfaz
rapidamente. Baixa oleosidade;
Aroma. Madeira úmida e folhas úmidas com
um pouquinho de aniz encontrado algumas vezes no Bálsamo. A referência da cana
fica em segundo plano porém de maneira harmônica (para meu paladar). O bouquet
de uma forma geral não é muito ativo, o que intriga o degustador na
identificação da madeira e gera a curiosidade de experimentar a cachaça no
paladar.
Paladar. Há duas sensações que chamam
atenção. Uma é a confirmação do aniz que pode-se confundir ligeiramente com um
canela, e outra o “enxuto” que sugere cica de casca de frutas (como casca de
goiaba ou cajá manga) também conhecido como nódoa. Esta última sensação sugere
algo táctil mas não posso afirmar isto com exatidão. Minhas referências
pessoais foram o cipó mil homens, e até mesmo a canela sassafrás, mas muito
mais por um certo apimentado do que amadeiramento.
Provei
desta cachaça algumas vezes, não só estudando-a como simplesmente bebendo e
outra observação que faço é que sua coloração sugere um amadeiramento intenso,
o que não se confirma no paladar. Esta madeira realmente deve ser mais estudada por todos os
atores do universo da cachaça. Aos que estiverem em Teixeira de Freitas, os lugares mais indicados para a compra da Matriarca são o restaurante Sinhô, e o mercado municipal, onde a Matriarca conta com uma loja.
Agradeço a Beto Pinto, sua esposa Lana e suas filhas pela recepção,
acolhimento, atenção e carinho em nos mostrar tudo sobre a Matriarca que ao mesmo tempo pude perceber ser parte da história da família, já que o próprio nome da cachaça é uma referência à mãe de Beto Pinto e à região do descobrimento.
Agradeço a Jaqueline Luz, Ananda Luz, Tarsila Luz Matraca e Marcus Matraca pela companhia, incentivo e pelos registros. Agradeço à lena, funcionária da Matriarca, que fez o primeiro e último atendimento passando informações adicionais para viabilizar a postagem.
Ponta de Areia Ponto Final
Como não poderia ser diferente aproveito para falar um pouco de música e turismo. Aproveitamos a proximidade e conhecemos Prado, Alcobaça e Ponta de Areia, distrito de Caravelas. Esta última chama atenção pelo bucolismo. Parece que visitamos uma cidade mineira na Bahia e essa sensação é fácil de explicar já que a cidade de Ponta de Areia fora por muito tempo a última estação da antiga ferrovia Minas – Bahia. Esta ligação entre os dois estados ainda é muito forte e percebe-se traços culturais do norte de Minas no extremo sul da Bahia. Pena que as estradas de ferro sejam atualmente lembranças de um tempo passado.
Prado
Recomendo a visita a região, pelo valor histórico e pela beleza de suas paisagens. Fica aqui a reflexão sobre a viabilidade das estradas de ferro como atrativos turísticos em regiões como essa.
A propósito: Tarsila, o Milton também toca sanfoninha!